Depois de passar seis meses em Moçambique em 2010, a jornalista Amanda Rossi retornou ao país três anos depois para conhecer as iniciativas brasileiras germinadas durante sua primeira visita. O resultado é o livro Moçambique: O Brasil é aqui – Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África [Record, 405 págs.], que acaba de ser lançado. 

Esmiuçando os detalhes das empreitadas e das empreiteiras brasileiras em Moçambique, a partir do governo Lula, o livro traz à tona informações do intricado mosaico de negócios do Brasil no país e revela questões delicadas das relações das empresas com o governo brasileiro. O financiamento das viagens do ex-presidente para o continente africano é uma delas. Leia trecho da obra a seguir:

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Mal desci do carro em Moatize, norte de Moçambique, percebi que minha mochila era inconveniente. Os dezesseis homens que combatiam a Vale eram como leopardos camuflados entre arbustos. Observavam, imóveis, para distinguir o predador da presa – os olhos ativos, os rostos calados, numa combinação de medo e potência. Com discrição, voltei para o veículo e escondi a bolsa antes que eles a vissem. Não temia por nada que houvesse dentro dela. O receio vinha do símbolo costurado do lado de fora: uma bandeira do Brasil.

Estávamos no ponto central da cidade, localizado a 9 quilômetros da mina de carvão da Vale – o maior investimento corrente do Brasil na África. Na primeira fase do empreendimento, a abertura da mina inicial, o gasto foi de 1,8 bilhão de dólares. A segunda, que inclui uma nova mina, uma ferrovia e um porto, deve consumir outros 6,4 bilhões de dólares até 2016. O valor total representa mais da metade do PIB anual moçambicano. Para dar lugar ao negócio, 1.365 famílias e cerca de quinhentos oleiros (produtores de tijolos de barro) foram removidos das terras que ocupavam.

Já sem a mochila, me aproximei daqueles homens. Eram os oleiros mais combativos e, nos dias anteriores, 16 e 17 de abril de 2013, estiveram na linha de frente de protestos que paralisaram as minas brasileiras. No momento do nosso encontro, eles aguardavam o início da primeira reunião de negociação com a mineradora. O local de espera era a rotatória de Moatize. Trata-se de um dos poucos pontos asfaltados e o único planejado da cidade de cerca de 100 mil habitantes. O restante da região se espalha desordenadamente pela savana.

Eu havia comprado a bandeira do Brasil como um preparativo para minha primeira viagem para Moçambique, em 2010, um ano antes de a Vale dar início à produção de carvão. Era uma estratégia de aproximação que deu certo. O símbolo pregado na mochila abria portas, motivava conversas, inaugurava amizades, quebrava preconceitos. Eu não era europeia nem americana, origens que carregavam autoridade e distinção. Era brasileira. Fazia toda a diferença. Vinha do país do futebol, das novelas e de “Lula da Silva”, o presidente “amigo de África” que grande parte dos moçambicanos parecia conhecer, desde a capital Maputo até pequenos povoados rurais.

Três anos depois, os mesmos verde e amarelo, também cores do logotipo da Vale, inspiravam cautela em meio aos oleiros. Não éramos bem-vindos. A conversa deles era em português (a língua oficial de Moçambique) e eu só revelei meu sotaque brasileiro após o primeiro contato ser feito pela ONG Justiça Ambiental. A organização, uma das vozes mais críticas à Vale em Moçambique, foi que me apresentou aos oleiros. Aos poucos, os olhos dos homens foram se acalmando. Eles farejaram em mim um bicho fora da cadeia alimentar – nem presa, nem predador.

– Esses da Vale vieram com boas promessas. Só que acabaram por mudar. Eles estão aqui para cinquenta anos. E nós vamos fazer que atividades? – questionou Isaac Sinababa, fazendo referência ao tempo da concessão de exploração, de 25 anos, renováveis por mais 25.

Sinababa era o porta-voz dos oleiros. Foi o primeiro a me oferecer um sorriso, em meio à barba farta. De camisa de mangas longas por dentro da calça social clara, Sinababa costurava a narrativa sobre a disputa com a multinacional brasileira. A produção de tijolos era uma atividade que ele desempenhava desde a infância, fonte de sustento dos cinco filhos, e que fazia dele um pequeno empresário. Mas, sob o chão barrento usado na olaria, havia uma riqueza mais preciosa: o carvão. Para que a Vale pudesse extraí-lo, o negócio de Sinababa foi desfeito.

A princípio, Sinababa se entusiasmou com a chegada da empresa brasileira e esperava participar do propagado desenvolvimento que desembarcaria em Moatize. Nos primeiros anos, tudo correu bem. A mineradora pagou 60 mil meticais (4,5 mil reais)1 para cada forno de produção de tijolos retirado. Também ofereceu cursos de capacitação para formar mão de obra na região. Sinababa aproveitou a oportunidade e se tornou canalizador, uma nova profissão que ele cita com orgulho. A satisfação, contudo, não durou.

– Aquelas pessoas que a Vale formou não foram enquadradas no serviço. Então nós fomos pedir emprego. Onde? Nós entramos na Odebrecht, que estava a fazer todas as bases da mina da Vale. Eu entrei em 22 de setembro de 2008 e fiz o trabalho. Só que, quando terminaram os trabalhos da mina, começaram a tirar as pessoas. A Odebrecht tinha 5 mil e poucos homens, fora os subcontratados. Todos nós perdemos emprego. Para retornar para a região onde fazíamos fabrico de tijolos, a Vale já ocupou. Agora, fica a pessoa desempregada – reclamou Sinababa.

Os demais oleiros ouviam Sinababa com deferência. Suas peles eram de um negro reluzente como carvão, os cabelos raspados, a barba feita. Apesar de os olhos terem amainado, a expressão dos rostos continuava fechada, ajudando a presumir a tensão dos protestos ocorridos dias antes.

No primeiro dia das manifestações, antes mesmo de o sol aparecer, os oleiros bloquearam a entrada de acesso à mina da Vale. Estacionaram um pequeno caminhão em posição perpendicular à estrada para impedir o trânsito e dispararam ameaças contra os trabalhadores que chegavam para o expediente: “Se passar, vai morrer lá na frente!” Não houve quem ousasse verificar se eram palavras vazias. Ninguém entrou e, sem funcionários, a Vale parou. Os dezesseis oleiros não estavam sozinhos. Estimam que cerca de duzentas pessoas participaram da manifestação, que prosseguiu até o dia seguinte, quando foi reprimida pela Força de Intervenção Rápida, a temida FIR, o batalhão de choque moçambicano.

Por um lado, a presença do Brasil em Moçambique, alavancada pela Vale, foi marcada pela expectativa de que os brasileiros ajudassem o país africano a crescer e a se desenvolver. Em 2012, Moçambique tinha o terceiro pior IDH do mundo e uma pequenina economia (equivalente à de Sergipe, o sexto estado brasileiro mais pobre). Por outro lado, há uma oposição em ascensão. O Brasil vai deixando de ser visto apenas como um país amigo e passa a ser questionado pelos impactos sociais dos seus interesses econômicos na África. De povo irmão, estamos virando o primo rico.

– Você, jornalista lá no Brasil, diga: esse desenvolvimento que tira daqui de Moçambique é para levar para o Brasil, para vocês viverem melhor lá. Então, os moçambicanos aqui [devem] viver mal. É isso? É bom isso? – questionou Saize Roia, líder de uma das comunidades removidas pela Vale. Em 2012, elas bloquearam a ferrovia que transporta o carvão, em protesto contra a má qualidade das casas que receberam da empresa.

Fazia menos de quatro dias que eu havia pousado em Moçambique, um país do tamanho de São Paulo e de Minas Gerais juntos, com 25 milhões de habitantes. Ali, passaria uma nova temporada de 46 dias para conhecer projetos de empresas e do governo brasileiro, iniciados desde minha primeira visita ao país, em 2010. O mais importante, para mim, era ir a Moatize, a 1,6 mil quilômetros da capital Maputo.

O meu cronograma previa uma viagem à região só dali a um mês, mas a urgência da manifestação alterou os planos. Logo depois de obter a documentação de jornalista estrangeira no Gabinete da Informação, uma exigência para fazer reportagens, peguei um voo de Maputo para Tete, capital da província onde ficam as reservas de carvão.

Ao embarcar no aeroporto de Maputo, tive uma primeira surpresa. O avião era brasileiro, um Embraer 190, com capacidade para 93 passageiros. Das doze aeronaves das Linhas Aéreas de Moçambique (LAM), a única companhia de aviação civil do país, oito eram da Embraer, compradas a partir de 2009.  Os modelos brasileiros de pequeno porte fazem sucesso na África, onde a quantidade de pessoas com poder aquisitivo para voar é reduzida, garantindo à Embraer um fantástico crescimento. Moral da história: eu viajava para acompanhar a oposição contra uma multinacional brasileira em um avião do Brasil.

Cheguei a Moatize no dia seguinte aos protestos. Diante das ameaças de novas manifestações, a Vale marcou uma primeira reunião com os oleiros para aquele dia, na sede do poder público de Moatize. Era uma construção branca e simples, de um andar, anunciada por uma bandeira de Moçambique muito surrada. Ficava em volta da rotatória onde encontrei os oleiros. No quarteirão ao lado, ainda em torno do largo, uma casa silenciosa aguardava pelo movimento da noite. Na fachada, estava pintada de vermelho a frase “Jesus Cristo é o Senhor” e a imagem de uma pomba branca dentro de um coração vermelho. Era mais um templo da brasileira Igreja Universal do Reino de Deus.

A Universal entrou em Moçambique em 1992 com um único pastor. Nos anos seguintes, se multiplicou como coelhos. Só em Maputo existem mais de trinta templos. Um deles é a maior construção religiosa do país, com capacidade para três mil pessoas.

Sua inauguração, em 2011, virou reportagem elogiosa na TV Record brasileira, que não fez nenhuma referência ao fato mais importante daquele dia: duas pessoas morreram asfixiadas na tentativa de assistir ao culto do bispo Edir Macedo. Um público de 60 mil fiéis se aglomerava do lado de fora. A igreja confirmou as mortes. No dia seguinte, Macedo foi recebido pessoalmente pelo presidente de Moçambique, Armando Guebuza. A Universal não é a única a pregar os ensinamentos de um Jesus brasileiro para os moçambicanos. Outras evangélicas se tornaram importantes produtos de exportação do Brasil para a África.

– É assim: ela é baixinha, não é? – disse o oleiro Sinababa, apontando para o meu 1,60 metro. Em seguida, indicou um dos ativistas da ONG Justiça Ambiental: – E ele é muito alto, não é? Se eu, que estou no meio dos dois, sou o governo, o que eu tenho que fazer? Tenho que mediar, não é? Não posso deixar que o grande faça mal a ela porque é baixinha. Mas isso não está a acontecer. O governo está sempre do lado da Vale.

A negociação entre o governo de Moçambique e a empresa brasileira não era, contudo, de igual para igual. No ano em que o contrato da Vale foi assinado, o valor de mercado da mineradora era de 154 bilhões de dólares. E o PIB do país, de 8,6 bilhões.3 Em outras palavras, o então presidente da Vale, Roger Agnelli, tinha dezessete vezes mais força econômica do que o presidente moçambicano. Em entrevista concedida dias depois dos protestos dos oleiros, o diretor da Vale para África, Ásia e Austrália, Ricardo Saad, defendeu a mineradora:

– Um dos grandes desafios é administrar a expectativa. Todo o mundo torceu e teve a expectativa de que sua vida e o país iriam mudar da noite para o dia. E não é assim que as coisas acontecem. Todos esses benefícios de que a gente fala ocorrerão ao longo do tempo. Os oleiros entraram para a reunião com a Vale e, para aguardá-los, eu me sentei em uma barraca de palha que vendia refrigerantes logo ali.

Do celular da dona da lojinha, vinha o som que iria embalar a espera: Paula Fernandes, a cantora sertaneja de Minas Gerais. Puxei assunto com a moçambicana, que me contou, orgulhosa, que tinha dois gigabytes de música brasileira e que amava a nossa televisão. O programa de maior sucesso era a novela Balacobaco, retransmitida pela Rede Record, que assumiu o controle de um canal local em 2010 e se tornou líder de audiência. A grade da Rede Globo também era exibida por outra emissora moçambicana.

Eu observava a composição das cenas ao meu redor um tanto desnorteada, suando com o calor de mais de 35o C de Moatize. Lá estava eu, poucos dias após cruzar o oceano Atlântico, a 8,5 mil quilômetros do Brasil. Aguardava o término de uma negociação entre a Vale e um grupo de manifestantes, gente que ficou desempregada depois de trabalhar para a Odebrecht, escutando conversas sobre a novela da Record, ao som da cantora mineira Paula Fernandes, de frente para uma Igreja Universal, na sequência de voar em um avião da Embraer.

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Moçambique: O Brasil é aqui – Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África, de Amanda Rossi [Record, 405 págs., R$ 50]

 

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