Por Angelo Mendes Corrêa*

Por sua vasta produção literária, Raquel Naveira despertou elogios de nomes da envergadura de Antonio Houaiss, Cleonice Berardinelli, Afonso Romano de Sant’Anna, Lygia Bojunga Nunes e Eclea Bosi, entre outros que têm sabido reconhecer o seu talento poético e crítico, permitindo-nos afirmar, sem o menor favor, tratar-se de um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.

Professora universitária há quase três décadas, é doutora em Língua e Literatura Francesas pela Universidade de Nancy, na França, e mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Nesta entrevista, a escritora sul-matogrossense, que publicou seu primeiro livro, Via Sacra, em 1981, e os mais recentes, Quarto de Artista, em 2013, e Dora, a menina escritora e outros contos de infância, em 2014, discorre sobre o fazer poético e a construção de sua obra.

Conte-nos um pouco sobre sua infância e adolescência e seu envolvimento com Mato Grosso do Sul. Sempre fui fascinada pela palavra. Ela é minha forma de ser e estar no mundo. Quando criança, amava as cantigas de rodas, ouvir histórias e o objeto livro. Meu avô era um autodidata, possuía uma boa biblioteca e eu gostava de manusear os livros, de observar figuras à luz de velas. Logo que comecei a ler, encontrei Monteiro Lobato e foi um abrir das portas da imaginação. Meu avô me levou a Taubaté para conhecer o Sítio do Picapau Amarelo e lá participei de um concurso da Petrobrás sobre a vida e a obra de Monteiro Lobato. Eu devia ter uns oito anos, foi quando resolvi ser escritora. Escrevia histórias de fadas e bruxas em cadernos. Era meio bruxa e meio fada. Quando voltamos para Campo Grande, estudei na Aliança Francesa, dando continuidade ao francês. Aos quinze, passei a dar aulas na Aliança Francesa. Nasci professora. O amor pelos livros transformou-se em amor pelo Magistério. Gostava de dar aulas para minhas bonecas, de fazer chamada, de passar lições na lousa. A poesia veio na adolescência. Como bálsamo e remédio. Creio que mágoas curam grandes mágoas, como disse Camões. Penso, como Rilke, que o poeta vê poesia em seu cotidiano e, se não o consegue, a culpa é dele mesmo. Gosto de revelações, de epifanias, de momentos que explodem no cotidiano e que fazem tudo mudar.

Em que momento manifestou-se a inclinação para as letras? Como disse, a minha vocação para as letras é uma vocação de infância. Conto um pouco de minha história: nasci em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em 1957, filha de um oficial do exército, Adahil Pereira da Silva e de Marlene Carvalho. Meus pais se separaram depois de dois anos de casamento e duas filhas e fomos criadas com imenso carinho pelos nossos avós, José Dias de Carvalho, o português Carvalhinho e Emília. Passei a infância, até os doze anos, em São Paulo, num casarão antigo da Vila Mariana. Estudei no Madre Cabrini e no Liceu Pasteur. As lembranças de cantarmos a Marselhesa e hastearmos lado a lado as bandeiras do Brasil e da França fizeram da França minha segunda pátria. A pátria da alma, da poesia, do amor perdido em redemoinhos de folhas à beira do Sena.Voltamos a Campo Grande. Meu avô possuía um sítio chamado Primavera e era necessário cuidá-lo. Esse sítio marcou-me profundamente. As flores nas cercas, a casa simples com fogão a lenha, as melancias pelo caminho que levava ao córrego, as árvores: laranjeiras, mangueiras, frondosos ingazeiros. Estudávamos no Colégio Auxiliadora, que eu amava. Sempre gostei do ambiente de estudo, dos colegas e professores, das festas, das peças de teatro. A vida sempre me pareceu útil e boa dentro da escola e tudo o que eu queria era sempre estar  ali. Aos quinze anos, passei a dar aulas na Aliança Francesa, dirigida pela professora Glorinha, minha mestra, musa e modelo. E aos dezoito no Auxiliadora, onde fiquei por onze anos, dando início à minha saga no magistério.Paralelamente, fiz o curso de Direito, na antiga FUCMT. Mas a verdadeira vocação eram as letras, a literatura. Pensava, como dizia Rilke, que não poderia viver sem escrever. E sonhava e chorava lendo Castro Alves, Drummond, Augusto Frederico Schimidt: “Eles me entendem, são meus irmãos”, eu pensava. Casei-me, aos vinte anos, com meu colega Adhemar Portocarrero Naveira, companheiro da juventude e de todos os momentos. E tivemos três filhos: Augusto, Otávio e Letícia. Hoje somos avós de Maria Augusta e de Maria Eduarda e nos sentimos cada vez mais próximos, unidos e testados pelas provas difíceis que vencemos com a ajuda de Deus até aqui.Formei-me, depois, em Letras, ainda na FUCMT, e comecei a dar aulas no Departamento de Letras, onde permaneci por dezenove anos. Além de dar aulas de várias disciplinas, trabalhei na editora UCDB (Univeridade Católica Dom Bosco), apresentei e produzi, por seis anos, o programa Prosa e Verso, na TV Universitária, entrevistando vários escritores como Adélia Prado, Zuenir Ventura, entre outros. Durante trinta anos, escrevi no jornal Correio do Estado: crônicas, ensaios, poemas. É sempre uma alegria e uma emoção quando alguém me diz que colecionou poemas meus, que os colocou em cadernos e diários, que algum poema o ajudou a viver e a ter esperança. Pois creio em poesia como ato fraterno. Aos quarenta e oito anos, logo após a minha aposentadoria, recebi um convite para dar aulas no Rio de Janeiro, na Universidade Santa Úrsula. Meu desejo de ampliar horizontes, de conhecer novas pessoas, principalmente aquelas do meio literário a que eu pertencia de forma espiritual, era muito grande e aceitei. Minha visão de mundo mudou completamente. Viver no Rio é conhecer a realidade brasileira com toda sua dor e delícia. Após dois anos, tivemos que vir para São Paulo. Era preciso unir toda a família: nossos filhos, minha mãe doente e o gato. Hoje estamos em ares bandeirantes. Continuo dando aulas e cursos em universidades e aparelhos culturais, procurando dar nossa contribuição de experiência e amor. O sonho permanece: viver da literatura, para a literatura, pela literatura.

Que influências foram mais significativas em sua formação? Sempre fui uma leitora apaixonada. Desde criança: Monteiro Lobato, Andersen, os irmãos Grimm, as Mil e uma noites, Malba Tahan. Na adolescência, a poesia: os românticos, o revolucionário Castro Alves, o genial Álvares de Azevedo, o clássico Gonçalves Dias; os modernistas: Mário de Andrade, Drummond, Bandeira. E houve Clarice. Lygia, amiga querida que passou a enviar-me seus livros com lindas dedicatórias. E Nélida, que narra tudo como Homero. A literatura francesa caminhou lado a lado com cada escola literária estudada: Rimbaud, Baudelaire, Verlaine. A literatura latina, sou fascinada pela Roma antiga, pela mitologia greco-romana, pela filosofia. A literatura latino-americana com o realismo fantástico de um Borges. E hoje, a literatura africana com Mia Couto à frente. Nunca esquecendo que minha leitura de todos os dias é a bíblia. Tudo está lá: oráculos, ensinamentos, poesia pura como ouro de Ofir. Com destaque para os salmos, o Eclesiastes, os Cantares de Salomão e as cartas de Paulo.

Acha que ser poeta ainda traz para muitos a conotação de romântico, de alguém um tanto alheio à realidade do dia a dia? Há sim ainda um estereótipo de poeta nefelibata, que anda nas nuvens. Mesmo depois de Drummond ter dito que queria cantar “a vida presente, o tempo presente”. Todo poeta é muito concentrado e atento em coisas mínimas, naquilo que aos outros passa despercebido. Daí a sensação de que o poeta vive distante. Certa vez, estava andando pela rua 14, rua principal de minha cidade e vi uma antiga loja de turcos, onde se vendia uma mala, daquelas duras, marrons, meio canastra. Perguntei-me: quem compraria essa mala? Pronto: era o primeiro verso de um poema que ficou assim:

Mala

Na loja do turco

Vende-se mala,

Daquela marrom,

Dura,

Com dobradiças de metal;

Uma mala meio baú,

Meio canastra

Que cheira a passado.

 

Quem compraria essa mala?

 

Um mágico

Para guardar lenços e pombas?

 

Um passageiro

Com destino à cordilheira dos Andes?

 

Um assassino

Para colocar os pedaços do corpo da vítima?

 

Uma viúva

Para esconder cartas e rosas murchas?

 

Uma criança

Para colecionar bolitas e tesourinhas de unha?

 

Qualquer pessoa que carregasse essa mala

Seria suspeita.

Acredita que o poeta tem alguma função no mundo? O poeta é porta-voz de uma sociedade, de um tempo, é antena do inconsciente coletivo. Fala o que muitos gostariam de falar, leva uma palavra fraterna ao coração de muitos. Mitiga a fome de beleza que todos temos dentro de nós.

Correto afirmar que sua poesia se funda na religiosidade, na memória e no épico? Correto. Vivo em busca de Deus e de mim mesma. Sondo-me. Meu maior interlocutor é o Outro, com quem estou sempre em comunhão. A memória jorra em golfos: ela é a matriz da fraternidade. O épico é meu desejo de ser sujeito da história, de conhecer e compreender a história: os fatos, os sentimentos, as consequências de cada decisão. Escrevi sobre a Guerra do Paraguai, sobre a Guerra do Contestado, sobre a imigração árabe e armênia em Mato Grosso do Sul. Publico semanalmente crônicas na revista eletrônica Top Vitrine, que têm muitas vezes temáticas históricas. Amo os romanceiros, os romances históricos e as biografias de personagens históricas.

De que forma lida com a ideia de transcendência? Assim como Manuel Bandeira, creio que a vida é uma preparação para a morte. O fim de todos os milagres. Creio na vida eterna, no juízo, no arrebatamento. Ambiciono a salvação.

Qual o seu processo para dar um livro como concluído? Os livros muitas vezes são escritos em poucos dias, mas todos se desenvolveram durante séculos, durante toda a vida, dentro de nós. Os livros de poemas devem possuir um número razoável de poemas, a produção de alguns anos. Outros livros obedecem a um esquema que precede a escrita. Escrever livros é uma tarefa que não tem fim.

Ainda é um desafio escrever e publicar fora do eixo Rio-São Paulo? Cada livro é um novo desafio: na criação e na publicação. É preciso bater às portas. Às vezes a resposta é sim, outras é não. A tudo, em toda circunstância, sempre agradecer. Agradeço tudo que consegui realizar até aqui e também o que não consegui. Minha confiança em Deus é total e sei que tudo contribui para o meu bem. O importante é resistir sempre, perseverar, procurar caminhos, exercer o ofício com disciplina.

Como tem sido sua experiência no magistério? Há meios de despertar em nossos jovens o gosto poético? É muito importante o incentivo à produção literária por parte do poder público: projetos, prêmios, patrocínios, publicações, tudo o que dê recursos e visibilidade à obra e ao artista. Quanto às universidades, os cursos de Letras, de Pedagogia, de Comunicação, de Jornalismo, de Cinema, de Artes em geral, têm o papel de apresentar aos acadêmicos os autores, os livros, os textos, incentivar a literatura comparada. A leitura e a literatura são a base de tudo. Professores bem formados, vocacionados, apaixonados por livros, preparados para a sala de aula, estimulam os seus alunos através de modelos, os modelos de leitura e os modelos de vida. Conhecemos, claro, as dificuldades do magistério nos dias de hoje, mas sempre haverá o mestre que ama o seu ofício e se dedica a ele.

E o que vem por aí? Atualmente, preparo um novo livro de crônicas e um volume de poesia reunida.

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Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo(USP), professor e jornalista

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