* Por Carlos Augusto Silva *

Para Marina Lima

 

“… a sabedoria – lado épico da verdade –, está em extinção”. Walter Benjamin.

 

Uma cultura se alimenta e se edifica na produção e na promoção de bens artísticos e intelectuais que serão, depois de temperados e cozidos pelo tempo, anexados ou não à classe das coisas do espírito humano. Claro, as palavras “bens” e “produto” soam mal se falamos de cultura em um sentido amplo, mas pouco usual hoje em dia, ainda assim o sentido ideal e esperado: a cultura dos bens universais dos homens, os produtos de sua beleza, bens de sua ternura, produtos do epicentro de sua brutalidade de amar e de sentir, e de subsistir ao desumano da violência banal e bárbara.

Muitas são as searas nas quais se cultivam e se engendram os objetos, os produtos culturais ou, como queiram, as obras de arte. No entanto, um cenário pacífico de convivência entre as diversas modalidades de expressão artística é ilusão. Os bastidores fervem na temperatura da fogueira das vaidades. Uma “paz velada” já nem é uma meta entre artes, artífices e artistas. Esta paz cordial ascendeu à categoria de sonho ideal, regozijo.

Dentro das próprias searas gerais, ou grandes nichos, temos subdivisões: Literatura: poesia – prosa – literatura de massa – linha editorial dos clássicos – literatura contemporânea… Música: erudita – canção – folclore… Dança: clássica – ballet – dança típica – dança moderna… Pintores: desenhistas – ilustradores – artesãos…

Quem defende o uso restrito de categorias, numa visão estanque das artes ou, cenário mais tenso ainda, a uma dessas categorias pertence, acotovela-se por espaço de produção, veiculação, exibição, uns com os outros, seus q u a s e irmãos.

Um dos campos em que a disputa é mais acirrada é o da música, em seu velho dilema: popular ou erudito? As canções diferenciam-se das músicas propriamente ditas, ao menos para os acadêmicos da área, aqueles que se bacharelam em Música nas universidades e atuam, formam-se e ampliam-se nos conservatórios, relacionando-se com a música enquanto arte e ciência. Música, para estes profissionais, esses maestros, compositores, virtuoses, estaria restrita ao universo das composições eruditas ou de cunho experimental, temático, sofisticado em termos instrumentais e de cumprimento, exigindo de quem as for executar muito estudo e exercícios, como é em toda arte levada a sério. As sonatas, as sinfonias, as óperas constituem o terreno desse campo da música.

No Brasil e na maior parte dos mercados do mundo, a Música Popular seria a produtora de canções cujas letras se aproximam da poesia lírica, relatando experiências pessoais, ou meditações breves, sem pretensões filosóficas a respeito da existência, de sentimentos e experiências comuns a muitos de nós. Este posicionamento popular V.S. erudito não é uma unanimidade, nem goza de apoio da maioria dos ouvintes e profissionais do ramo, estes são, no fogo cruzado dessa binomia, no mínimo reticentes quanto à divisão tácita.

O apelo da MPB, no Brasil, é quase sempre imediato nos corações e mentes dos ouvintes, graças, principalmente, à identificação temática e à simplicidade melódica. Essas canções contam as suas próprias histórias, que lhes dão base e assento garantido entre todos, e depois decoram, ornam as nossas próprias histórias particulares, singulares, reais e ao mesmo tempo inventadas também, pela conjuntura e contexto. Como diria o saudoso poeta Ferreira Gullar:  a vida é inventada.

Assimilamos as canções por semelhança ou analogia, já que elas têm suas porções narrativas, mesmo sendo líricas. Ficam em nossa mente as canções populares, e as cantamos para celebrar ou lamentar um amor perdido ou ganhado, uma vitória celebrada ou uma derrota para se esquecer; impregnamos épocas a essas canções, e elas ganham carga material, como um perfume, um sabor que nos remete a tal situação, pessoa, período, desejo ou frustração. Viram parte de nós esse jogo de som universal e sentido particular.

O romantismo literário brasileiro fez uso também de uma melodia fácil em sua enunciação, com palavras afetuosas de uso comum à época, para ficarem – melodia e palavras –, na mente dos brasileiros, forjando assim, na ocasião do Brasil recém e artificialmente independente, o amor pela pátria que nascia, como mostram, por exemplo, os versos de “Canção do exílio”, cujo o autor é o poeta Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá”.

As canções e poesias populares são os temas de nossas vidas. Com ethos semelhantes ao dos cancioneiros medievais, das cantigas de amigo, de escárnio, de amor ou de maldizer, compositores enormes da música popular brasileira escrevem com sujeito lírico no feminino, mesmo sendo homens, como Chico Buarque, e retratam nosso cotidiano com a finalidade de entreter e refestelar as arestas da experiência em suas dimensões políticas, sociais, culturais, sentimentais.

Tal qual faziam os trovadores medievais, faz Chico, e acertam ambos – o brasileiro e os poetas medievais portugueses – em cheio, na letra e nos corações de homens e mulheres que veem e ouvem, tanto e tão bem, cantores e compositores desfiarem a trama intensa do coração de uma mulher, bem como os fios dos enredos cotidianos que perfazem os dias de todos no relógio e calendário íntimos que trazemos no peito.

Até os anos 1990 o produto-objeto cultural da música (o vinil ou fita k7) eram itens populares, mas especiais. Davam uma amostra de como uma canção popular marca nossas vidas sempre. O dia em que presenteamos um grande amor. O álbum compartilhado com um amigo. Uma aventura amorosa que valeu para sempre a fita k7 guardada debaixo de sete chaves, ou mesmo a canção que elegemos para ser a trilha sonora de determinado evento de nossas vidas.

As vezes ligamos tanto uma música popular a um lugar, uma época ou pessoas, que sensações ganham trilha sonora: sempre que descemos em um aeroporto e tomamos um taxi, a mesma música toca no carro e em nosso coração. O cheiro, as cores, o clima se impregnam na música. A paisagem tem, em nosso imaginário, som, ritmo, harmonia e letra. Muita Letra. Muita Letra mesmo. Vale lembrar, a poesia lírica tem esse nome graças a um instrumento musical da Grécia Antiga. A poesia lírica, em sua forma clássica grega, foi inventada para ser cantada, não para ser lida.

O poeta francês Charles Baudelaire abre a modernidade, no século XIX, trazendo a poesia, em especial a lírica, para outro lugar. Nele, a poesia descerá aos nossos abismos existenciais, lincados – leitor, poeta e poesia – ao mundo material que nos cerca em todas as dimensões. A poesia do real e do drama existencial. Uma ambição pelo humano, recheado de desafio, sem medo de ser inconsequente, fez com que seus versos atingissem nossa subjetividade e ao mesmo tempo levassem o leitor a um nível de reflexão antes nunca conhecido.

A solidão é o par ideal, seja do sujeito lírico que se enuncia nos poemas e letras de música, ou do ouvinte/leitor, que usufruem da música pop: a solidão não é a causa do sentimento negativo a respeito das relações humanas. A solidão é um sintoma da incapacidade, nesse mundo de passagens e galerias, de tantas informações e opções, de nos fixarmos a um lugar ou pessoa. Tudo é urgente, tudo é para ontem, mas nada de sólido é edificado, e “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Todos os laços afetivos são urgentes de se selarem – e permanecem urgentes, mesmo sem jamais serem feitos. Incapazes de nos lincarmos, de fato, a algo ou a alguém, seguimos atentos e entediados, absolvidos e condenados por nossa fragilidade e direito de fracassarmos enquanto amantes e amados.

Tudo é por demais fluido, fugaz, rápido, passageiro: a mentira ganha paisagem de verdade inconteste, enquanto a verdade íntegra ganha contornos de ingenuidade. Esta visão baudelairiana marcou todas as artes que vieram depois da publicação de “As flores do mal”. Na música, na poesia, no teatro, ninguém conseguiu, ainda, ser anti-baudelairiano. No cinema e em outros produtos pops de consumo cultural, ninguém escapa de Baudelaire. A modernidade silenciosa, lacônica e incomunicável de Baudelaire está em tudo. Na música brasileira a modernidade de Baudelaire está em peças ícones de nosso imaginário e cultura, como “Ronda”, “Por onde anda você”, “Sampa” e tantas outras.

A qualidade das três canções acima citadas, em meio a centenas de igual valor, evidencia a inquebrantável verdade de que a cultura pop não precisa ser ruim; que a arte popular, em sua simplificação (diferente de simploriedade), pode ser de alto nível, de muita perenidade e de grande acréscimo ao repertório cultural de uma sociedade, como acontece no Brasil, tão marcado por sua música popular, seja no samba, na bossa nova, no pop, no rock, na música sertaneja de raiz, nos registros de nosso Folclore e muito mais.

Duas canções chamam a nossa atenção no panteão de grandes compositores e obras brasileiros. Essas duas canções expressam a nossa solidão, não apenas como lamento, mas como reflexão de nossa condição existencial: “Vitrines”, de Chico Buarque, do álbum “Almanaque”, e a mais moderna de nossas canções, indo, do título aos balbucios dos últimos versos cantados, ao extremo de nossa incapacidade de dizer, somar e dividir na vida: “Acontecimentos”, de Marina Lima e do poeta imortal da Academia Brasileira de Letras, irmão carnal da cantora, Antônio Cícero.

Letra e música, em “Acontecimentos”, do álbum “Marina Lima”, parecem ter nascido por um milagre, tão orgânicas são, e tão definitivas se estabelecem em quem a ela se dedica em uma audição sensível, atenta e reflexiva.

Parece-nos impossível melhorar o que eles nos entregam em texto, melodia e interpretação de Marina Lima, interpretação na qual a cantora e compositora flerta com a arte dramática, pois fosse o texto da Letra dito em uma peça de teatro, parece-nos que só poderia ser dito como ela disse na canção. Por todos os ângulos “Acontecimentos” é aquilo que está. Talvez seja este o efeito do poético: uma peça artística que não dá para retocar porque é, em essência quase religiosa, aquilo que é, nasceu para ser, e sempre será.

Vejamos a inesquecível letra, retrato dos anos 1980, com aroma de Cazuza e Caio Fernando Abreu, a trilha sonora que nunca envelhece, soando fresca e fatal a qualquer ouvido que a ouça – mais: que a escute. Eis a letra da incontornável canção:

 Acontecimentos

(Marina Lima / Antônio Cícero)

Eu espero

Acontecimentos

Só que quando anoitece

É festa no outro apartamento

 

Todo amor

Vale o quanto brilha

E aí

O meu ainda brilhava

Brilho de joia e de fantasia

 

O que é que há com nós?

O que é que há com nós dois, amor?

Me responda depois

Me diz por onde você me prende

Por onde foge

E o que pretende de mim

 

Era fácil

Nem dá pra esquecer

Aí, e eu nem sabia

Como era feliz de ter você

 

Como pôde

Queimar nosso filme?

Um longe do outro

Morrendo de tédio e de ciúmes

 

O que é que há com nós?

O que é que há com nós dois, amor?

Me responda depois

Me diz por onde você me prende

Por onde foge

E o que pretende de mim

 

Eu espero…

Como pôde?

Queimar nosso filme…

O título não poderia ser mais amplo: “Acontecimentos”. Mas ele engana a um olhar apressado. “Acontecimentos”, segundo o Dicionário Oxford, é “o que acontece ou se realiza de modo inesperado; acaso, eventualidade”. Um acontecimento é diferente de um fato. O fato é algo isolado. Fato histórico, por exemplo, decorre de um processo cujas causas são mapeáveis. O acontecimento é volátil. O sujeito lírico da letra espera o fluido, o fugaz, o inopinado que acerta em cheio a visão deste que procura e espera. Daí o uso do plural ser perfeito para a obra, reforçando a ideia de séries de “acontecimentos” fabricados pela modernidade.

Por que espera por acontecimentos? Qual o horizonte de expectativa desta voz que diz esperar (precisar/desejar/apostar em) pelo que não permanece? A expectativa e o desejo se dão pelo que lhe falta ou pelo que tem em demasia? A sequência da letra/canção nos dirá que é pela falta que este desejo vem, e mais do que ser pela falta de alguém, é pela falta da palavra que une, que tem o poder de adir sentimentos semelhantes que, no mutismo, perdem-se na escuridão. Ela espera porque o vazio é impossível de ser preenchido, porque a comunicação se perdeu no processo de descarte das coisas preciosas.

De saída temos uma confissão e constatação – confessa o que deseja e se constata a respeito de sua cartografia afetiva. O sujeito lírico se apresenta dizendo o que almeja – acontecimentos, mas um duplo se abre aqui: essa confissão não tem o peso certeiro das confissões que entregam uma verdade sobre um fato ou situação. Já sabemos o que ela espera, e sabemos porquê: os vazios esperam para serem ocupados como um algodão descartável, essencial no início, socorrendo a ferida, e descartado – sem culpa, de lado a lado, por quem descarta e é descartado, após cumprir a função de não ser fato, mas apenas “acontecimentos”. As buscas, no mundo moderno, não visam o duradouro das respostas, mas sim o fugidio do esquecimento. Nossas dores são fugidias, como o tempo, e nossa tristeza, em um Spleen de Baudelaire, é dor perfumada por flores do mal. Dor com aroma de tédio.

O tempo do fugaz, do passageiro, do esquálido, sempre é colocado como imperativo. Este tempo veloz se impõe. Não tivesse a voz lírica caminhado naturalmente pelo errante itinerário dos sonhos, desejos, experiências e frustrações, ainda assim sucumbiria, se não pelos “acontecimentos”, por ficar, uma hora ou outra, diante da força esmagadora das “cinzas das horas”.

Uma sentença soma uma informação à letra, e surge logo depois que o sujeito lírico abre a canção deixando claro o que deseja: “ que quando anoitece é festa no outro apartamento”. A festa se soma ao universo da voz poética, passa a compor o seu cenário, mesmo que ela não esteja na festa e só possa acessá-la em sua imaginação. Adiante veremos os motivos pelos quais a festa tem poder de ação na subjetividade da voz lírica.

Um declínio ininterrupto marca o percurso dessa voz. O sentimento de Spleen, perpetuado por Charles Baudelaire, ganha mais e mais contorno temático, moldura do poema: esse Spleen inusitado, dos trópicos, nada deve aos de Paris, e são tão melancólicos quanto os de lá: uma melancolia sem perspectiva de final; uma tristeza inominada porque não tem nome a sua origem, os seus porquês. Uma solidão atroz, cujas dores são de ordem existencial, insolúveis de forma física: seria a mesma solidão nas companhias dos lares de família, na fraternidade das igrejas santificadas, ou nas amizades de infância – feitas da noite para o dia –, nos bordéis legitimados para serem lugares de se passar, apenas.

Esse algo sem nome, que ganha território, impede que os acontecimentos se realizem de forma concreta e profunda. Ora, por que uma festa no outro apartamento vai impedir que os acontecimentos fugazes, prazerosos e fugidios se desenrolem na vida do solitário sujeito lírico? É que na festa acontece outro duplo contrário para a voz lírica: 1. enquanto a voz lírica está só, carente de fugacidades que lhe façam esquecer, do outro lado da parede há uma festa na qual, no mínimo, dissimula-se uma fraternidade alheia a ela – e à maioria de nós, e mais: lá ela certamente encontraria os acontecimentos, tão perto e inacessíveis; 2. Os convidados da festa e o seu anfitrião conseguiram, nessa gestão dos atos e sentimentos vazios, das palavras e das coisas sem interior, encontrar um meio de diálogo que os priva da solidão física silente e angustiante. Verdadeira radiografia dos anos 1980 até aqui, em que o mutismo e a distância, o cinismo e a vaidade têm imperado na costura das relações de afeto, seja de que ordem for.

O sucesso popular da música e o triunfo sintático-semântico do texto não deixam dúvidas de que a obra é assertiva em estatura artístico-significativa, do começo ao fim, e se comunica em cheio com quem tem ouvidos para ouvir.

O teórico e crítico literário Hugo Friedrich, em “Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX”, já anuncia a negatividade nos poetas modernos pós Baudelaire. A obra de Marina e Cícero estão ajustadas ao compasso de seu tempo, comunicam sua época, como toda obra de arte consegue fazer.

O apartamento é signo espacial de enclausuramento, pois não consegue o sujeito lírico fugir do som da festa ao lado, que soa como uma admoestação da sua solidão, da falta, do vazio, e principalmente da mudez entre pessoas que se querem, mas não sabem construir, com a linguagem, um elo minimamente viável entre elas. A negatividade – não o negativismo – recobre tudo, pois nenhum horizonte se abre para a voz lírica, aparentemente urdindo como se render, e não como lutar, já que não sabe especificar, verbalizar, com clareza, contra o que luta, para quem se rende.

A estrofe seguinte se inicia com o lançamento de uma sentença: “Todo amor / Vale o quanto brilha”. Tiro seco no imaginário romântico: todo amor vale como adereço, enfeite dispensável, que carrega valor material, distrai-nos da observação do interior, é colocado sempre para angariar os olhares de terceiros e alimentar uma vaidade banal porque não foi edificada em bases sólidas.

Jürgen Habermas, em “O discurso filosófico da Modernidade”, corrobora o ethos de missão moderna que uma canção como “Acontecimentos” pode ter. Diz Habermas: “A Modernidade não pode e não quer continuar a ir colher em outras épocas os critérios para a sua orientação, ela tem de criar em si própria as normas porque se rege. A Modernidade vê-se remetida a si própria sem que a isso possa fugir. Assim se explica a hipersensibilidade com que se vê a si própria, o dinamismo das tentativas de se ‘estabelecer’ a si própria que se têm registrado continuamente até aos nossos dias.”

A sequência da letra não deixa dúvidas a respeito das bases nas quais – consciente ou inconscientemente –, a canção simples nos revira e mostra a carcaça espiritual frágil ante a fantasia do material, ressaltando e especificando a natureza do brilho do amor da voz lírica, que ainda a habitava, entregando-nos outra informação do sujeito lírico: a voz lírica lamenta um amor que aconteceu, não deu certo e precisa ser compreendido, precisa ser elaborado, já que passou, como passam o encanto pelo brilho artificioso das joias e das fábulas irreais: “E aí / O meu ainda brilhava / Brilho de joia e de fantasia”. Brilhava, não mais.

A terceira estrofe vem com dois versos que levantam uma indagação direta da voz lírica ao seu par incompatível, agora claramente identificável (existe alguém). A pergunta é a mesma, a sua repetição denota a urgência em saber, a gravidade de se saber o que há entre eles que torna esta relação escabrosa do ponto de vista da concretude corpórea. A pergunta, tímida no começo, vem mais grave e com ternura revelada na segunda formulação: “O que é que há com nós? / O que é que há com nós dois, amor?”. Obviamente um “conosco” caberia após o verbo “haver”, mas dissolveria a coloquialidade dos amantes.

Uma quebra abrupta, desconcertante, fere a lógica fácil das obviedades: depois da urgência no perguntar, a sentença vem num nonsense incompreensível, mas compreendido aqui justamente por ser incompreensível, como tudo: “Me responda depois”. Definitivamente não há, nesta relação amorosa, um elo com o mundo verbalizado, ou uma possibilidade pacífica de comunicação entre as individualidades e as coisas que os rodeiam, e qualquer tentativa é de princípio falida. O sujeito lírico, aqui, é sempre um estrangeiro em si mesmo, como são os sujeitos líricos da modernidade, seus irmãos.

Haverá uma possiblidade pacífica e conciliadora no interior de algum dos ouvintes desse amor inviável, apesar de existente? Podemos aventar a possibilidade de que os autores da canção pensem que não. A lista dos pedidos da voz poética, em contrário de cessar após o adiamento da resposta, revela a total contradição do seu interior, duplicando, triplicando a demanda de respostas para perguntas deixadas para depois, fechando com um paradoxo: “Me diz por onde você me prende / Por onde foge / E o que pretende de mim”. O amor que prende é o mesmo que foge depois de prender, ou prende e foge ao mesmo tempo, sendo a fuga exatamente o elemento que prende: a ausência é a mais elevada forma de presença. Subscrito está: “mas diga tudo isso depois”. Quando? Não fica dito, nem ficará, pois “dizer” é o problema entre os que se amam.

Chama a atenção também que a voz lírica cobre de seu par as origens e características das teias com as quais ele a apreende: “Me diz por onde você me prende”. Indagá-lo a respeito das trilhas e roteiros de suas conquistas e fugas é esperado, mas as sendas percorridas por ele para apreendê-la e enredá-la na sua estrutura amorosa, não. Saberá ele mais dela do que ela própria? Terá ele cartografia mais detalhada dos sentimentos da voz lírica, mapeando as suas fragilidades mais do que ela mesma? Não sabemos, e a letra levanta as possibilidades para estas questões, mas não as responde, como todo grande texto. E que bom que é assim, na mudez eloquente, comovemo-nos ao extremo, ao limite do abismo silencioso da mais pétrea solidão.

O desfiar da letra e a interpretação de Marina são tão orgânicos que a apresentação de um caso peculiar, singular, ganha contorno de verdade universal sobre os que amam, em qualquer lugar. Assim se dá porque a peça tem um tônus fortíssimo. A letra é seríssima e a melodia e interpretação vestem a letra com perfeição. Esse casamento do pessoal com o universal se dá com toda arte forte. Marcel Proust, leitor e entusiasta de Baudelaire, com um quase inominado “eu”, entregou-nos um mapa da alma humana escrito em primeira pessoa, por longas três mil páginas. O drama desta canção popular, dos versos de Baudelaire ou do romance de Proust dizem respeito a todos nós.

A épica viagem do eu solitário prossegue, com seus adornos e musculatura líricas até a medula: “Era fácil / Nem dá pra esquecer / Aí, e eu nem sabia / Como era feliz de ter você”. As sentenças contraditórias seguem em um tom crescente quanto ao confessional: por ser fácil demais, natural demais, feliz demais, nem dá pra esquecer. A lógica usual diz que nunca nos esquecemos das pancadas que recebemos, mas não aqui: quanto mais fácil, mais inesquecível, mais terno, mais extraordinário, ainda que em um cenário de aspereza, ou justamente pela aspereza. Nesse mundo incomunicável, a exceção, o raro, é o fácil, o simples, e desse fácil, desse simples não nos esquecemos, especialmente depois de perdê-los.

Em muitos momentos a lógica formal do poema-letra é quebrada por uma linguagem autônoma diante do real. Interessa mais o texto-poema-letra enquanto forma significativa, cuja sonoridade já passa a dar conta da emissão de sentido que almeja oferecer, a não ser que a falta de sentido seja, propositalmente, o sentido emitido. Hugo Friedrich diz que tal linguagem autônoma “é obscura, às vezes, até o ponto de o poeta ‘não compreender a si próprio’; pois importam-lhe as ‘relações musicais da alma’, as sequências de acento e de tensão, as quais não dependem mais da significação das palavras. […] Eu quase me atreveria a dizer que o caos deve transparecer em toda a poesia”.

A linguagem – em seu caos ou ordem – é o que humaniza os homens, e não o silêncio. As palavras transformam a realidade e organizam o mundo. A palavra “mãe”, por exemplo, tem o condão de transmutar uma mulher, dentre tantas outras, na mais particular dos seres que existem. Se a voz que nos fala na canção não sabia como era feliz por ter o seu ente amado, ela não pôde viver plenamente esta história, pois não pôde verbalizá-la, ou seja, não pôde comunicar este amor, nem a dimensão de sua importância e significado. Por isso buscamos o tempo perdido, para nele entendermos a verdade de nossas vidas, no registro mais real do que o real, o da memória.

A voz, enquanto tinha aquele ente amado, não soube falar do amor que agora a submerge de perguntas e inquietações. Terrível constatação proustiana aqui: “os verdadeiros paraísos são os que perdemos”, disse o escritor francês. É que, em Proust, quando temos o paraíso, ocupados em desfrutar dele, esquecemo-nos de entendê-lo, tentando fazer isso apenas d e p o i s.

Mais perguntas sem respostas, sem previsão sugerida ou anunciada para essas respostas: “Como pôde / Queimar nosso filme? / Um longe do outro / Morrendo de tédio e de ciúmes.” Aqui, uma dimensão épica do amor se estabelece: o amor é uma história, uma épica, uma narrativa que tem determinado tom de acordo com o andar das circunstâncias e das possibilidades que essas circunstâncias se dão, para o bem ou para o mal. Tristemente não depende de nós fazermos as histórias de amor darem ou não certo, e não há, nunca há, garantias.

Como pôde, na visão da voz lírica, o seu amado queimar este filme que viviam e sempre mostravam para os outros? A exibição da vida para o outro aparece aqui na polissemia da palavra filme (narrativa – exibição de narrativa – plateia/público). Como pôde o amado inverter o jogo do filme, deixando de ser a história do casal possível de antes? Como pode transformá-los em dois ciumentos inconciliáveis, que não tem opções a não ser sofrer, estejam onde estiverem, isolados, ou acordados, com uma festa ao lado?

Qual a questão com as respostas? Por que adiá-las? É que saber delas não cessará a dor. Saber delas é sepultar a esperança e a ilusão, antídotos possíveis, mesmo que insuficientes. O adiamento das respostas é uma fuga, e não uma sedução. Quem quer a sequência incerta de “acontecimentos” não tem interesses em verdades permanentes, ainda que ame. Só o tempo, até o próximo caso, até a próxima dor que dissipará esta, dando lugar a outras ilusões incomunicáveis.

A música termina com o balbuciar das perguntas que dirigiram grande parte da letra, sugerindo que madrugada adentro o sujeito lírico se perguntará as mesmas questões, cujas respostas ele quer adiar, mas com urgência em indagar.

Octavio Paz, no célebre “O arco e a Lira”, fala-nos de um condão organizador da poesia diante de determinados objetos, e o poeta saberia organizar, por analogia ou discrepância, por sonoridade e outros motivos. Em “Acontecimentos” perguntas e constatações semelhantes, mas ainda assim conflitantes, vindas de dois espíritos sedentos, unificam-se na justa letra desta canção tão bela. Paz diz em “O arco e a lira”, que a poesia seria “algo que se confunde com o próprio tempo e também conosco, e que sendo de todos, também é único e singular”. A música é de todos os que são humanos.

Num lance brilhante e comovente, inesquecível e embalante, Marina Lima e Antônio Cícero entregaram, nesta e em outras tantas canções da fraterna e consanguínea parceria, um a c o n t e c i m e n t o espiritual, na concepção hegeliana de espiritual, e no sentido mais bonito e singular que podemos conceber um ato cultural, tomado como um fato histórico das jornadas, das histórias do coração, do espírito de todos nós.

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Carlos Augusto Silva é formado em História e Letras. Especialista em Crítica Literária e Hist. da Arte. Mestre em Letras e Linguística. Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, onde pesquisa a obra e a vida de Marcel Proust. Professor de Literatura e História da Arte. Colunista na Revista Bula, Jornal Opção; colaborador eventual no Jornal Rascunho. Autor do Dicionário Proust: as personagens de Em busca do tempo perdido; Proust e a História: ensaios sobre Em busca do temo perdido, e Opção crítica – notas de crítica e literatura (2006-2012).

Foto: Candé Salles

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