É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

***

* Por Elânia André *

A infância é um país mágico donde somos todos expatriados pela percepção da morte, ou da crueldade. ”

Mario Velho da Costa

O bombardeio intenso quase ultrapassou a trincheira trinta e cinco da Zona Norte semana passada…. Foi por pouco, pessoal! Aproveitar a trégua, bora lá pegar os cadernos e correr para a escola. Vocês fizeram o dever de casa? No meu horário de vigília, aproveitei para destrinchar aquela equação de segundo grau. Os exercícios de logaritmos – o grande desafio do final de semana –, depois, é claro, de nos mantermos salvos. Corram! Vamos nos escondendo atrás dos carros até chegar perto do portão principal da velha escola. De lá damos a senha – arremesso de três pedrinhas no latão de ferro, lançadas pelo estilingue que capturamos de outra geração –  e a Diretora entenderá que é o grupo de alunos que conseguiu chegar hoje.

Atenção, galera, hora de ler os boletins com as novas diretrizes contra a guerra que já se arrasta há anos:  aprovada a verba para produzir uniformes com coletes a prova de bala nas escolas dos subúrbios, mas ainda não foi decidido quando serão distribuídos e como as crianças farão para aguentar tanto peso. O projeto piloto será no Rio de Janeiro; e se der certo, será estendido para as cidades mais violentas… entendeu até aqui, pessoal? Não, mas não importa, também não entendi nadica. Continuando: poderosos comemoram no grande salão blindado, com vinho francês e caviar, a grande expectativa, após esforços diversos: o Brasil poderá ultrapassar as grandes potências com a maior população carcerária do mundo. Medalha de ouro é a meta. Eles gritam palavras de ordem: punição é a solução, punição é a solução! E para que não seja preciso investimento na construção de presídios de alvenaria, cientistas internacionais da área de alimentos foram convidados para desenvolverem um mecanismo para que os presidiários sejam empacotados a vácuo para o aproveitamento de espaço dentro da estrutura já existente. Mas um deputado apresentou um projeto de lei para a legalização da execução sumária de bandidos se forem: pobres, índios, negros e outros inimigos do Estado, ele conta com o apoio dos colegas.

Caraca, que piada! Jogue no lixo os jornais, por favor, Patricinha, porque ainda temos papel higiênico.

Avante! Avante!

Correr! Esconder! Escapar!

Todos atentos? Lembrem-se dos treinamentos de tática defensiva: não perder ritmo da corrida de ida e volta no trajeto casa-escola. Já há crianças pegando em armas e não estamos falando dos manos que moram lá longe e que só vemos na televisão. Muitos pixotes. Os morros estão chorando pelas mortes dos moradores, sangram a céu aberto.

Já nos acostumamos a ouvir os sons da guerra pá pá pá pá … Ok, bróderes? É preciso saber quando são trovões, pipocas na panela, foguetes ou quando são rajadas. À noite é até bonito aquele colar de fogo cruzando o céu… mas atenção e concentração a todo momento e se o coração disparar e vocês pressentirem a matança, todos para as passagens secretas e abrigos improvisados, vale esconder atrás da geladeira, debaixo da cama, alguns já estão cavando abrigos subterrâneos nas ruas e nas casas, trincheiras pra todo lado.

Uhruuuuu, a escola está funcionando, sinal de trégua!

Vejam, eu trouxe a bola de basquete! Um tesouro. Várias medalhas enfeitam meu barraco. Mas tenho que me esforçar, porque nas mãos do meu pai já não cabem mais calos, minha mãe ainda me chama de “meu bebê”, diz que ainda sou nova para isso e aquilo, e à noite ainda me cobre na hora de dormir, me beija a testa e me dá conselho, estude, minha filha, escove os dentes… filha;, cuidado, filha, o mundo é feroz. Recebemos treinamentos dos familiares desde muito cedo, como um pequeno exército: correr, esconder, escapar, mas por vezes a bala não está perdida (perdidos estamos nós no caminho das balas), é o campo de guerra que cresce, vale tudo. O chumbo salta de um lado pro outro, mas nesse bang-bang moderno não acreditamos em mocinhos, na hora da luta deles sobra pra qualquer um, fogo cruzado, cada um por si e deus por ninguém. Tanto faz. Assim a vida fica cada vez mais curta, mas ouça, minha gente, o importante é continuar a correr, esconder, escapar, não podemos desanimar. Estamos sempre em fuga.

Correr! Esconder! Escapar!

Vamos, a diretora abriu o portão, deixou uma greta, corram. Ufa, fiz a contagem, não perdemos nenhum pássaro, estamos salvos. Podem relaxar, em escola e igreja eles não entram. Pronto, pessoal, vamos, bebam água para recuperar o fôlego. O dia está dando bons sinais, a professora também conseguiu chegar, teremos aula de história, geografia, português e de matemática. Depois, educação física – minha melhor hora. Olha, pessoal, na volta o comando fica com o Tomás, ele assume o meu lugar, cada dia um, multiplicadores das técnicas de defesa nessa guerrilha de sobrevivência. A Síria é aqui, combinado? Não soou alarme, estamos tranquilos, vamos tirar a camuflagem, e vestir os uniformes. Pra sala, bora!

Passe a bola, anda que a cesta é certa. Uhhhhhruuuu, ponto para nós, galera! Hoje estamos com sorte. Vamos lá, pessoal, sem moleza, corre, corre, quica a bola, senão […] o professor pressente o momento de terror, tenta o toque de recolher, sua voz assume o comando: corram… Rafael, abaixe.  Luana, entre no abrigo amarelo. Filó,  esconderijo X3. Cadê a Duda, gente?

Fui atingida na asa esquerda, tentei acionar o campo magnético invisível, mas ele não foi testado no nosso território, não funciona aqui, pensei em usar outros superpoderes, estamos cercados, … Cuidado, Du…  … cheguei a crer que era um filme proibido para menores de idade, mas a ausência de ternura trouxe a realidade à tona,  … pressenti que viria uma terceira bala, eu alvo passarinho. Olho a bola parada na quadra. O jeito é virar estrela.

***

Sou eu que assumo o comando, “miséria pouca é bobagem”, mamãe sempre diz. Vamos, pessoal, tentar retornar às nossas casas, vamos fazer a contagem e ver quantas foram as baixas de hoje.

Abateram um colibri.

***

Eltânia André é escritora, autora de Manhãs adiadas (Editora Dobradura)

 

 

Tags: