* Por Viviane Ka *

Paralelo das relações amorosas no livro Dias de abandono, Elena Ferrante; Cenas de um casamento, Ingmar Bergman; e Cutie and the boxer, de Zachary Heinzerling

O casal, essa eterna fonte de inspiração para os artistas. Em um verão de Lúcifer, as chamadas ondas de calor na Itália, com temperaturas acima de 40 graus, uma mulher, Olga, vive um inferno pessoal. É a personagem do livro Dias de abandono (2013), da escritora Elena Ferrante. Seu marido, Mario, depois de quinze anos de casamento, acorda em um dia normal, diz que sente um vazio e comunica que vai embora. Sem direito a discussão de relacionamento ou qualquer explicação, Olga é abandonada com cão e filhos, entra em uma espiral de loucura e dor, e seu mundo literalmente cai. Incapaz de cuidar de si e da casa, tem que lutar contra formigas minúsculas que de repente infestam o lar e, como uma zumbi, espalha o veneno que lhe corrói as vísceras e que terá consequências funestas. Os anos acumulados de silêncio dentro do casamento logo são substituídos por uma terrível ansiedade, e como uma boa italiana, Olga não segura a raiva por ter sido abandonada e arma um barraco quando, sem querer, esbarra na rua com o ex-marido e a nova amante. Ela grita, esmurra, arranca sangue. Mesmo assim, parece que conversa com ninguém, ninguém a ouve, ninguém acolhe. Após a catarse, tem que haver-se.

Em um gélido inverno sueco, com toda a civilidade, Johan, friamente, comunica a Marianne, interpretada por Liv Ulmann, que vai embora. Ele está tendo um caso extraconjugal. O casal, aparentemente feliz, começa uma dissecação do relacionamento. É o filme do cineasta sueco Ingmar Bergman, Cenas de um casamento (1973). Os dois conversam educadamente sobre sua história amorosa, mas há um ressentimento não exposto. A discussão realmente começa quando Johan fala do confortável papel de vítima que as mulheres assumem dentro do casamento. É aí que o casal vai arrancando suas máscaras até chegarem à agressão física.

Para Bergman, a auto-sabotagem das próprias mulheres, agradando aos outros ao manter suas bocas fechadas, a agressão secreta, que se expressa na falta de entusiasmo pelo sexo, sua ambição de viver de acordo com um papel que foi criado para ela por suas mães, esse é o motivo de verdadeira tensão nos relacionamentos. Olga, a personagem de Elena Ferrante, vive assombrada pelas histórias que sua mãe contava sobre uma mulher que se jogou no rio depois de ter sido abandonada pelo marido. Estaria ela vivendo um dor real ou apenas realizando esse mito secreto?

Quanto vale uma bunda para segurar um homem dentro de um casamento? É o que se pergunta Olga, dilacerada pela constatação de sua ausência no mundo. Deixou seu trabalho de escritora para cuidar da família, como se escrever fosse uma profissão de segunda mão, até lavar roupas é mais importante do que a escrita de uma mulher. Ao contrário de sua personagem descontrolada, o texto de Elena Ferrante vai provando seu domínio narrativo. É como se a vida da mulher sem o contorno determinado pelo homem virasse um filme de terror. Não consegue nem abrir uma porta. Página a página, Olga conversa com sua sombra, especula sobre sua culpa e validade como mulher desejada. Maquia-se e mutila-se. Assim como Marianne, que é acusada de negociar sexo por uma noite de paz.

Primavera em Nova York. As cerejeiras florescem no Jardim Botânico do Brooklyn. Todo o cenário parece cheio de romantismo. O casal de artistas japoneses, Ushio e Noriko Shinohara, juntos há 40 anos, passeia tranquilo, em silêncio. No documentário Cutie and the boxer (2013) de Zachary Heinzerling, Ushio, aos oitenta anos, é cheio de energia, assim como sua mulher, a linda Noriko, vinte anos mais nova. Ele praticamente a atropela com suas conquistas e fracassos, sua arte bélica, seu alcoolismo, suas obsessões. Ela, no silêncio de sua mesa, em um canto da sala bagunçada, desconta sua raiva em delicadas aquarelas, que são o storyboard de sua vida conjugal.

Com paciência zen, Noriko espera a sua vez. Por muitos anos, sua arte calou-se. Seu filho nasceu, o marido adoeceu. Mas como a florescência da cerejeira, que dura poucos dias, mas a todo ano se renova, ela vai conquistando seu espaço, mesmo sem dinheiro, e sem um quarto próprio, que, como dizia Virginia Woolf, é imprescindível para a criatividade das mulheres artistas.

Comparadas, as três obras trazem a representação da mulher que abre mão da potência criativa e tenta se encaixar em papeis socialmente preestabelecidos, ativando suas bombas-relógios em silêncio. Dia a dia, arma-se para o momento da explosão. Como realizar algo sem o olhar de aprovação masculino? A culpa da realização é algo gigantesco na alma feminina. Nas três obras, a trajetória das mulheres é de muita sofrência, o que é também um mito feminino, assim como a imensa capacidade de cura que as faz encontrar um lugar dentro de si e também no mundo.

Recomendados:

– Dias de abandono, Elena Ferrante, Editora Globo (2016)

– Cenas de um casamento, Ingmar Bergman (1973)

Assista a um trecho: https://www.youtube.com/watch?v=t_5uGNzKxJo

– Cutie and the boxer de Zachary Heinzerling ( 2013): pode ser assistido na íntegra no YouTube.

Assista a um trecho: https://www.youtube.com/watch?v=Bx9XBGHce_U

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Viviane Ka é escritora e editora da São Paulo Review

 

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