* Por Ronaldo Cagiano *

É pelo o gatilho da memória que o poeta Tiago D. Oliveira  (Salvador, 1984) nos oferece a chave para a compreensão do polifônico território de suas vivências e percorrer o seu processo criativo, pois ao enunciar em seu mais recente livro que “é pelos pés do meu avô que entendo a vida” (pg. 23), eis a senha para um profundo mergulho em seu labirinto existencial, povoado de mitologias, ancestralidades e um imaginário que endossam sua peculiaríssima dicção. O caminho poético e a cartografia de três gerações – avô, pai e neto – são aqui dimensionados em instância de mergulho e reflexão.

                  As solas dos pés do meu avô (Ed. Patuá, SP, 2019), finalista do Prêmio Oceanos 2020 consolida uma trajetória iniciada com Distraído (Ed. Pinaúna, 2014), seguindo-se Debaixo do vazio (Ede. Córrego, 2016) e Contações (Ed. Patuá, 2018).

A metáfora dos pés que ganham o mundo e se esfolam na vertigem dos dias é a trilha para percorrer o intrincado espaço onírico em que cabem os passos (e tropeços) de tantas vidas. O pai, o avô, o caminho das migrações, o passado e o presente se interpenetram numa alegoria de vozes e ritos, radiografando tempos difusos, reverberando os “ecos em silêncio vindos de outra existência” para recompor um percurso em que o autor realizou “naquelas solas duras de pés juntos” o inventário de tantos desassossegos.

A voz do avó se espraia ao longo da narrativa, infiltrada por meio de uma certa onisciência presumida, em que a consciência do avô abre uma picada no meio do cipoal de lembrança. Por meio de uma sequência de vinhetas em colchetes deflagra-se uma espécie de mantra – como em [canta de novo, filho, canta,/ nunca escrevi um poema – como se tomado pelas mãos do neto, fosse aquele quem realmente des(a)fia um imenso e catártico novelo, onde desenrolam todos os tempos de uma vida. Essa interação simbiótica de vozes interiores, dá ritmo, harmonia, fluência e amálgama aos versos desse livro seccionado em oito partes, composto pela riqueza estilística e afiançado por um diálogo com T. S. Eliot, cujas epígrafes reforçam uma inequívoca familiaridade semântica e um flerte temático.

Na singularidade de seu narrar poético, Tiago percorre o inconsciente e as mitologias de uma existência povoada de signos e referenciais, tanto históricos, sociais e domésticos, como da própria construção da linguagem. A leitura desses poemas impõe-se sensivelmente ao leitor como uma hidrografia sentimental,  um fluxo contínuo e simbiótico de emoções, uma torrente miradas e reflexões, aliado a uma cuidadosa oficina verbal . O poema é o próprio leito por onde (es)corre a água multifacética e hieraclitiana das experiências vivenciais do autor como nos sugere em “vejo uma corrente/ nos olhos do meu pai/ vinda do mesmo rio  (…) e tantos outros rios, um elo/ sem fim com que o curso leva, / com que o curso traz”.

O corpo do poema é também trilha onde estão tatuados os pés de uma longa travessia, em que os registros geracionais autopsiam dilemas e a jornada conduz a essa sensação de fadiga diante da certeza de imperenidade que nos deixa como único espólio os vincos por dentro e por fora:  “veja o que nos resta, / um único escalda pés”.

Imagens fortes, símbolos evidentes de uma perplexidade imanente do autor, além da carga metafísica que reverbera aqui e ali e que nos sinalizam um espectro onde expõe uma visão impressionista das geografias exterior e psicológica que o cercam: “o corpo morto é afeto e fuga” (pg. 74); “nesses trinta e quatro/ colhi sandálias de couro/ nas diversas primaveras/ em que Itatim, Castro Alves/ Salvador ou Lisboa/ descalçaram meus pés” (pg. 79); “a memória é um tamarindal/ em movimento e harmonia/ na imagem que não cessa” (pg. 80); “a memória é um archote/ a insistir enquanto a noite/cresce nas pálpebras sobre/ cavalos em disparada selvagem” (pg. 89).

E num sucedâneo de exponenciais revisitas ao seu passado recente e a um presente-futuro de indagações. O encontro de contas com uma realidade nem sempre passível de controlar, com a desolação frente ao intangível, ou diante da força indomável do destino, o poeta premido pela distância e pela insularidade que o aparta da despedida do avô, recompõe cenários para declarar que “quando meu avô morreu eu não pude entrar/ naquele avião naquele cemitério naquele caixão/ caminhar em seus pés era a única forma de abraçá-lo” (pg. 83/84) e sua profissão de fé na poesia dá-lhe guarida para seguir com seus pés e exorcizar a dor e o vazio: “creio nas palavras. de não despencar/ em escombros a memória das cinzas/ que a própria memória carrega./ que a letra gera o que grafa em nós,/ no silêncio mais desconhecido possível.”

E ao fechar com chave de ouro esse sensível e sentido percurso, Tiago dá voz a um apelo interior, a chave para entender o arcabouço de “As solas dos pés do meu avô”: “[ canta de novo, filho, canta,/nunca escrevi um poema” e instaura-se uma contundente e apaziguadora força que nos faz crer que “no final somos todos/ de um mesmo lugar.” (pg. 92).  As soldas dos pés do meu avô reafirma uma voz potente e segura de um autor cuja dicção  inigualável o particulariza no panorama atual da poesia brasileira.

*

Ronaldo Cagiano é escritor mineiro de Cataguases, autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, Prêmio Jabuti 2016) e Cartografia do abismo (Poesia, Ed. Laranja Original, SP, 2020), está radicado em Lisboa.

Tags: , , , ,