Antes da luz

* Por Rogério Duarte *

Desperto em sobressalto: as linhas do tempo foram ceifadas. Estou desencorajado, porque os pequenos eventos cotidianos, que vinham respirar à tona dos traços, estão aniquilados. Desapareceu a diafaneidade leve das coisas ordinárias, e agora tudo é ofuscante, de incumbências, cargos e fardos pesadíssimos. Não restou nada sob o concreto, os espelhos, o cristal líquido.

Recobro a consciência: prescindo da reta e da meta ascendente, das impressões organizadas em profunda coerência – e entrego-me às vacilações, às impressões sem remuneração, que preciso carregar de formas corpulentas, desiguais, friccionadas. Os campos santos foram ocupados por edifícios corporativos – e entre o sono e a vigília os desaparecentes me sopram ao ouvido. Estou decidido a resgatá-los, mas cheguei tarde: aprendi de segunda mão com aprendizes velhos de mestres desistentes, nos lindes do prazo. Meu professor morreu faz nem cinco anos: as luzes estão apagadas, ninguém se ocupa mais de hemerotecas. Não tem mais papel, as gazetas migraram, o silêncio foi roubado – o tempo acabou, ou enlouqueceu.

Não me resta mais nada a não ser escutá-los: os vultos erráticos, cada vez mais esfumados, tempestades de homens. Folheiam páginas enormes ainda antes de o sol nascer e proferem disfarces de festa no pensamento: Há de chegar o dia em que a juventude será julgada, Calma, também tudo não é assim escuridão e morte, Não maltrate o menino, compadre, Assim vai crescer mofino, senhor presidente da câmara, Manda para Ouril, para as origens, para ele aprender, Eu não quero voltar para casa nunca mais, Pagar as contas mentindo é sempre uma forma de sobrevivência, O rapaz é pexote e está sendo roubado descaradamente, A negatividade mais funda não diz nada, Sou muito próximo do demônio do desapontamento. Não estou à altura do serviço, de modo que só resta pedir ajuda ao homem atormentado que esbarra em mim: sinto-lhe o hálito grosso dos cocainômanos fornalhados de uísque, olhos opacos chispantes, rosnando sentenças incompreensíveis, implorando.

Prefiro cruzar cedíssimo a Avenida Paulista ainda antes das multidões. Na esquina da Brigadeiro, um andrajado estridente me oferece uma flor, para que eu não me esqueça dele. Não pretendo correr maratona: eu só preciso tocar as pétalas esmarridas da estação. Um adolescente perigoso e embriagado me acena: veste jaqueta jeans, alfinetes atravessam-lhe a pele, ele cospe o tempo todo, por diversão. Tem as mãos dadas com uma garota, calados ambos, amedrontados – hoje percebo com clareza – plantados na porta de um baile que aconteceu há muitos anos, e que mereceria uma crônica. Estou conformado: quando se dissipar o lusco-fusco, não haverá casais nem flores: todo piso será objetivamente tracejado de linhas que pernas buliçosas se ocuparão em superar: jamais ousarei cruzar-lhes o caminho.

Mas nesta primeira hora de luz os contornos ainda estão esbatidos. É dia de matrimônio na Imaculada Conceição, é Catarina que casa, vestidíssima de noiva. Prometi-lhe uma viagem ao Rio de Janeiro, mas não pude cumprir. Antes que ela se dirija ao altar, peço-lhe um minuto, mas ela não parece reconhecer-me, embora sorria para mim. O pai e a mãe da noiva me olham com desaprovação, mas a luz do sol já faiscava: eles perdem a nitidez, como ela, como tudo. Amanhã eu vou acordar ainda mais cedo para aceitar a flor, fumar um cigarro com o casal e pedir desculpas a Catarina, antes que se vá.

Não posso deixar que eles desapareçam, espantados pelos nem viventes. Antes que calçadas e edifícios reflitam aquelas linhas a cruzar, ainda antes que a luz fulgure tão potente que não seja possível ler os teus poemas – bosquejo estas linhas do tempo num gesto de resistência.

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Rogério Duarte é professor de Língua e Literatura há 26 anos. Como escritor, publicou Carta ao Meu Pai (Editora Chiado, 2017) e Contos de Elevação e Desapontamento (Editora Scortecci, 2019). Atualmente, é Secretário Geral da União Brasileira de Escritores.

 

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