Por Claudia Nina *

A estrada me carrega no burro, sacoleja meus sonhos. Quando me lembro daqueles dias ainda choro. Quando não lembro choro também. Esquecimento não existe. Era dentro do balaio trançado que íamos tomar vacina em outras cidades distantes, na época eu e meus dois irmãos menores. Os outros tantos ainda não existiam, mas por pouco tempo. Logo vieram em bando, e a casa inundou-se de gente.

Botavam uma cangalha no animal e enganchavam um do lado do outro. Balançava muito até chegar lá. Às vezes chovia, o balaio encharcava, apesar do lençol que a mãe jogava sobre a gente, parecíamos fantasmas galopantes.  O pensamento estava na dor das seringas. O sacolejo sovava a bunda esfolada na trama grossa do balaio.

Neste dia de hoje: estou dentro do balaio, afundo a cabeça para não ver a estrada e a longa viagem. Fico escondida até chegar ao lugar das vacinas. Desde sempre fiz planos loucos de sair da pobreza: tirar meus pés da terra áspera e morar em um lugar diferente. Tudo aqui era cor de mandioca. Eu sonhava dourados.

Meus pés estão dentro do balaio, escondidos, acuados, os joelhos dobrados, tenho câimbras. Não consigo sair do aperto nem posso; preciso rever, pela frestinha do trançado, o que aconteceu com meus irmãos; eles saíram agora. Desceram, eu fiquei esquecida – será que alguém se lembrou de mim quando finalmente parti?

Tive nove irmãos. Um morreu logo depois de uma viagem. Na casa não tinha lugar para todo mundo, a mãe não conseguia dar conta da gente. Espalhávamos pelas ruas como bichos sem dono. Este meu irmão pequeno cismava de dormir debaixo de um caminhão estacionado eternamente na praça. Achava que era um caminhão enguiçado. Até que em uma noite o motorista deu a partida e, na escuridão, ao relento, foi esmagado dormindo. A gente assim imaginou, porque quando a mãe deu pela falta, ele estava socado no chão, seus ossos já enterrados quase nem foi preciso caixão.

A mãe ficou louca de tudo. Aquele filho parecia um cachorro, mas era uma estimação para ela, o menor deles, justamente o que se foi primeiro. Depois da morte, ela passou várias noites ao relento, deitada no chão. Acho que esperava que o mesmo caminhão voltasse e a arrastasse para o lugar onde o filho estava. O caminhão não voltou. O motorista nunca soube, talvez, que tinha esmagado criança. Pensou, quem sabe, que as rodas tinham passado sobre gravetos, tamanha a finura das pernas do menino.

Estou dentro do balaio, mas respiro com facilidade e consigo ver a estrada – quando a gente era pequeno nosso corpo afundava; um alívio crescer e poder ver o horizonte da terra, o que nem sempre era melhor, porque a poeira marrom batia nos olhos e ardia muito. Estou dentro do balaio e meus olhos ardem.

Eles saíram, eu fiquei. Vejo a distância eles serem retirados do balaio e ficarem na fila das vacinas. Quanto luxo: éramos miseráveis, mas tomávamos vacina, que tirariam de nós, por antecipação, a doença que não nos mataria. Mas de que adiantava? Tinha o caminhão, o relento e a fome.

Um ovo dividido em quatro partes. Este era meu almoço às vezes: um quarto de ovo. A gente não podia gritar nem chorar. Sabia que não adiantava. Não tinha comida e pronto. As noites sem dormir, com fome, só não eram mais ardidas do que a dor de voltar para a casa, outra longa viagem, depois das vacinas. As bundas picadas pelas seringas esfolavam no fundo do balaio.

Estou dentro do balaio, minha bunda arde e sinto fome.

Mesmo quando como carne assada, sinto gosto de ovo. Não dá pra esquecer a cara de agonia dos irmãos menores olhando o prato com respingos de ovo. Eles lambiam a vasilha com gosto de saliva. Eu me perguntava se a mãe também tinha fome, porque não parecia. De tanto não comer, o estômago tinha se esquecido de pedir alimento. Vivia quase de água e farinha.

Meu nome é Raimunda, mas só eu me chamo assim. Para todo o resto, sou Mundinha – meu tamanho esmirrado me ajudou a socar-me dentro do balaio. Tenho pouco mais de 1.40, e minha sombra é menor do que eu, porque ando encurvada e de lado. Gosto do meu nome, é uma mistura de raiz e de mundo, mas minha miudez fez com que as pessoas me diminuíssem, sufocando meu Raimunda, nome de rainha, no diminutivo.

A herança do balaio é o tamanho da vida pequena e faminta. Também é a imagem perfeita dos tempos em que comecei a sonhar, balançando meus planos de fuga, nos dias de chuva, quando pela estrada chacoalhávamos no burro, a vontade de voar. Sobrevivi ao destino. Fui uma das cinco que restou, além do irmão que hoje é dono do bar, e de outros três perdidos por aí. A casa da mandioca está lá, fincada no mesmo chão, e resiste. O cenário abriga os que não morreram por teimosia. Eu saí de um solavanco, no dia em que a segunda casa, onde vivi dos 10 aos 14, desabou – com minha mãe dentro.

Um estrondo espalhou poeira e parecia um cogumelo gigante destes de explosão nuclear. Não tive como entrar nem para dizer: adeus, mãe. Ela estava só e, de alguma forma, devia estar feliz – também tinha sido amassada, tal como o filho, quem sabe não o encontraria na terra dos esmagados.

Não me lembro se chorei, conseguia apenas pensar que ela não sentiria mais a fome que escondia no estômago inchado – devia ser fome aquela barriga tão grande. A morte tirou a mãe da fome e da dor de pensar no filho esmagado de madrugada embaixo de um caminhão. Diante da casa desabada, dei vários passos para trás e sumi. Virei fumaça, poeira de cogumelo também.

Fiz uma longa caminhada até onde não vejo burros nem pastos secos. Se ainda me soco dentro do balaio é para me lembrar do que não tenho direito de esquecer. O mais bonito é que aqui tão longe das casas de mandioca não me chamam de Mundinha. Virei Raimundá, e me sinto a rainha da França. Sempre achei que, se dentro do meu nome tinha quase um mundo, eu não podia morrer em um lugar onde não brilhassem  dourados.

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Claudia Nina é escritora

Imagem: detalhe da tela ‘Retirantes’, de Portinari

 

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