Por Rafael Mendes *

Se fechar os olhos, vejo tudo outra vez, como uma cena de teatro:

Um consultório. Uma prateleira com instrumentos medicinais, um leito, um armário de remédios, duas cadeiras e uma mesa. Sobre a mesa, um bule de café e uma garrafa de champanhe, além de xícaras e taças. Uma escrivaninha. Uma estante com livros; livros nas janelas, nas cadeiras. Outono. Ouvia-se o rumor das árvores. Tchekhov estava sentado à escrivaninha, com colarinho engomado e pincenê, compenetrado, escrevendo.

Ao notar a minha presença, sob o batente da porta, ele largou a pena sobre o papel, retirou o pincenê do nariz e, com seu sorriso de criança e sua voz suave, me convidou a entrar. Levantou, retirou os livros de uma das cadeiras, disse que eu sentasse, que não fizesse cerimônia.

“Vou lhe dar café”, ele disse. “Você toma café?”

“Às vezes”, eu respondi, sentando na cadeira.

“Você devia tomar sempre. É uma bebida maravilhosa. Quando estou trabalhando, não bebo nada a não ser café – e caldo de galinha, à tarde. Se eu não fizer isso, o meu trabalho sofre.”

Ele retirou os livros da outra cadeira, colocou-os sobre a mesa e sentou-se também. Então eu me vi diante daquele escritor que muitas vezes havia imaginado estar. Ao ler os seus contos, à noite, em minha cama, e meditar no que havia lido, sonhava com um encontro hipotético com ele, Tchekhov. E agora estávamos frente a frente, em Melinkhovo, sua propriedade rural, tomando café. De súbito nós éramos próximos, íntimos. Anton Pavlovitch era, para mim, Antosha; eu lhe era simplesmente o Rafa.

Antosha era um médico, estávamos em seu consultório, porém a consulta que eu queria fazer não dizia respeito a nenhuma doença. Queria saber dele algo que me fizesse transcender, como acontecia a seus personagens, assim, de repente, como na vida, depois de um diálogo, uma visita ao médico, o cair de um vaso, um beijo, qualquer coisa, mas, antes que dissesse algo, os sinos da igreja ortodoxa começaram a badalar.

“Os sinos”, ele disse, levantando-se e indo à janela. “Os sinos são tudo o que restou de minha fé.”

Antosha tossiu. Olhei bem para ele: muito magro, de olhos pequenos, dedos compridos e finos, barbicha, pálido e, mesmo assim, bonito. Tossiu outra vez.

“Não está se sentindo bem, Antosha?”

“Eu?”, ele respondeu, abrindo os olhos acinzentados. “Não é nada. Tenho um pouco de dor de cabeça.”

Quando os sinos calaram, senti uma vaga saudade do nada, desesperança e desânimo.

“Seu novo trabalho?”, eu disse, apontando para o papel na escrivaninha.

“É um conto breve.”

“E por que seus contos são sempre assim?”

“A brevidade é irmã do talento.”

E, como lhe era peculiar, emendando um assunto a outro sem ligação aparente, ele disse:

“Ao diabo com os ensinamentos dos grandes desse mundo!”

Nós rimos. Na presença cordial de Antosha, senti-me com o desejo de ser mais simples, mais verdadeiro, mais autêntico.

“Dia e noite”, ele disse, “uma obsessão me persegue: tenho de escrever, tenho de escrever, tenho… Assim que termino um trabalho, penso em ir ao teatro ou pescar… Nada disso: logo surge um novo tema para um conto, arrasto-me até a escrivaninha e outra vez tenho de escrever e escrever o mais depressa possível”.

Quando parou de falar, Antosha levou a mão ao peito e voltou a tossir. Foi até o leito e, debaixo dele, retirou uma escarradeira. Cuspiu um líquido avermelhado, espesso e viscoso. Constrangido, fui à janela. No jardim, o vento desfolhava os galhos das cerejeiras. Ouvi o grasnar de uma gaivota que voava longe, sobre o lago.

Entendi que nosso encontro estava chegando ao fim. Cogitei dizer que, ao contrário do que ele pensava, de que suas obras seriam lidas apenas por mais sete ou sete anos e meio, elas por certo haveriam de continuar sendo estudadas por muitas décadas, em todo o mundo. No entanto, percebi que era desnecessário dizer algo.

Agora ele estava sentado novamente na cadeira. Aproximei-me e o abracei com afeto. Antosha soergueu-se e disse:

“Vamos beber champanhe!”

Servimo-nos. Antosha pegou a taça cheia, lançou um olhar ao redor e sorriu.

“Faz tempo que não bebo champanhe…”

Era o fim de minha consulta. Antes de nos despedirmos, uma mariposa cinza, enorme, entrou pela janela e debateu-se penosamente contra as paredes do consultório, como numa agonia de morte. Apesar disso, diante de mim surgiu uma nova vida, ampla e livre, e essa nova vida, ainda pouco nítida e cheia de segredos, me chamava e me atraía.

*

Rafael Mendes é escritor

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