* Por Itamar Vieira Junior *

O sonho da aldeia Ding, romance de Yan Lianke, é uma poderosa alegoria sobre a destruição que o capitalismo vem empreendendo no mundo.

Parece fato que o que vivemos hoje com a pandemia da COVID-19 foi experimentado pela humanidade inúmeras vezes ao longo da história. Duas das calamidades mais lembradas nos últimos dias têm sido a peste bubônica, doença assustadora que devastou o mundo há séculos, e a gripe de 1918, que, para nosso horror, a atual pandemia vem repetido os mesmos detalhes cem anos depois, como vemos nas imagens de corpos jogados nas ruas da cidade de Guayaquil, no Equador, cenas que foram comuns na passagem da gripe pelo Brasil, no segundo semestre daquele mesmo ano.

Não parece surpresa também que a arte se antecipa no tempo para tecer alegorias sobre eventos que ainda viveremos. Sem dúvidas, a literatura busca inspiração no passado, mas nem por isso devemos desprezá-la, como se não fosse possível se repetir no futuro. Nestes dias temos nos deparado com textos que recordam como a arte literária, inspirada em calamidades reais ou metafóricas, lidou com o tema, a exemplo de Decamerão, de Boccaccio, A peste, de Camus, e Ensaio sobre a cegueira, de Saramago. Mas aqui comentarei outro livro que tinha na estante e voltou às minhas mãos neste período de isolamento: O sonho da aldeia Ding , do escritor Yan Lianke.

Lianke é um dos maiores nomes da literatura chinesa contemporânea, e vez ou outra aparece cotado ao Prêmio Nobel. Suas obras guardam uma forte crítica social, e tratam dos abusos do capitalismo de estado e da corrupção dos homens públicos que dominam seu país. Por isso, muitos dos seus livros são proibidos na China, que, por coincidência, foi o primeiro epicentro da atual pandemia. Lá o estado censurou cidadãos, inclusive da classe médica, que alertavam para um novo vírus que circulava na região de Wuhan no final de 2019. E é deste lugar que fala Lianke: a história da aldeia Ding, narrada pelo pequeno Qiang, morto após comer um tomate envenenado. Do limbo, Qiang conta a tragédia deste pequeno povoado: iludidos por funcionários do estado, os habitantes da aldeia Ding, uma vila de agricultores e homens simples, passam a vender o próprio sangue de forma precária e sem nenhum protocolo sanitário. A vida na aldeia muda, construções imponentes passam a fazer parte da paisagem, tudo possibilitado pelo dinheiro do comércio de sangue. Mas o pior está por vir: grande parte da população Ding e das aldeias vizinhas contraem a “febre” – uma referência ao HIV que anos depois leva os habitantes a desenvolverem a Aids.

O pai de Qiang, Ding Hui, vê no comércio de sangue a oportunidade de mudar de vida. Se engaja em iludir a população para que venda mais e mais sangue, até que os aldeões começam a adoecer. Indignado e envergonhado com o flagelo que se instalou na aldeia, o avô de Qiang e pai de Ding Hui, Ding Shuiyang, um professor aposentado, reúne os doentes na única escola, para que possa cuidar deles e manter alguma ordem na aldeia.

Quando o comércio de sangue não é mais possível, porque o sangue dos moradores já não serve mais e os primeiros doentes começam a morrer, Ding Hui passa a comercializar caixões. Os caixões são doações do estado, mas são vendidos por funcionários corruptos. Sem qualquer perspectiva de vida, os habitantes começam a planejar a própria morte, e, claro, nela está o desejo de ser sepultado nos mais belos caixões de madeira nobre. Para tanto, precisam desembolsar mais valores e toda a beleza da aldeia começa a perecer. Sem dinheiro, os moradores destroem as árvores, transformando a madeira de ginkgos, kiris e cedros em caixões, e o desastre ambiental torna a aldeia um lugar inóspito onde a vida não será mais possível. Quando não há mais quem enterrar, nem madeira para comercializar caixões, Ding Hui, passa a vender serviços para realizar casamentos post mortem, motivado pela crença local na vida após a morte. Assim, a história segue para um desfecho imprevisível.

O sonho da aldeia de enriquecer se torna um pesadelo. A ganância e a desumanidade de Ding Hui não são muito diferentes dos sentimentos de empresários e políticos brasileiros que relativizaram a morte de 5 mil, 7 mil cidadãos para não interromper a economia e seus lucros.  O livro é uma alegoria sobre a “doença” que pode ser o capitalismo, além de servir como um alerta para que entendamos que nenhum evento ocorre isolado porque, afinal, somos um todo. A emergência climática, o consumo desenfreado, a escravidão de homens e animais, e a desigualdade social, são faces de uma mesma tragédia. Não são apenas os animais e os povos originários que correm risco de extinção, mas todo um ecossistema do qual a humanidade é parte.  Como disse o pensador Ailton Krenak numa entrevista recente, espero que após tudo isso não voltemos à dita “normalidade”, porque se for assim não teremos entendido o recado da Terra.

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Itamar Vieira Junior é autor do romance Torto arado (editora Todavia), Prêmio Leya, entre outros livros.

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