* Por Rafael Gallo *

Já que a literatura pode pouco contra os boletos, eu tenho também um emprego formal, como escrevente no Tribunal de Justiça. O lado bom disso (além das contas pagas) é a sorte de ter caído em um Ofício cujo juiz, além de ser uma pessoa bem legal, é um grande leitor. Partilhamos, em especial, do gosto pela literatura portuguesa contemporânea, e foi ele que me indicou o Nuno Camarneiro. Comecei a lê-lo pelo ótimo No meu peito não cabem pássaros, que vou comentar aqui, afinal recomendações boas a gente tem mais é que passar adiante.

A história desse romance é repartida entre três protagonistas: Karl, um imigrante solitário em Nova York, à procura de companhia e meios de ganhar a vida; Fernando, um jovem português que gosta de escrever e vai morar com as tias em Lisboa; e Jorge, um menino argentino que ao lado da irmã, Norah, se entrega quase o tempo todo a jogos da imaginação.

Quem é entusiasta de biografias de escritores, talvez tenha percebido (o nome da irmã e a nacionalidade entregam): o menino se trata de Jorge Luís Borges, autor de O Aleph, entre outros. Fernando, o jovem português que gosta de escrever? Sim, é o Pessoa. O terceiro é mais difícil: Karl é um alter-ego de Franz Kafka, inspirado no protagonista de Amerika, do escritor tcheco.

Não se preocupe se não percebeu as referências; eu mesmo só as notei bem próximo do fim do livro (o Karl, na verdade, só mesmo depois de terminar e pesquisar no Google). Esse “desconhecimento” em nada atrapalhou a leitura; inclusive, o romance não tem uma proposta biográfica, os personagens transitam justamente pelos espaços mais desconhecidos – portanto, passíveis de ficcionalizações – de seus correspondentes. Jorge é um menino como tantos outros do mundo, Fernando um jovem do qual se poderia dizer o mesmo; as vivências dos personagens são quase plenamente invenções de Camarneiro, pouco há de “real”. Não importa muito quem eles são. Aliás, parece ser esse um dos eixos centrais do livro: seja na Argentina, em Portugal ou nos Estados Unidos; seja uma criança, um jovem ou um homem mais velho; seja um personagem ficcional ou algum futuro escritor, há muitos mais fios que conectam essas pessoas (e nós) do que são as distâncias. A solidão de um menino inadequado em Buenos Aires pode ser muito próxima à solidão de um jovem sem perspectivas em Lisboa, de um imigrante perdido nos Estados Unidos. Das tias de Fernando, dos colegas de trabalho de Karl, a minha ou a sua.

Quanto à escrita, Camarneiro soma-se ao rol de grandes nomes da literatura portuguesa atual. Tem o estilo elegante, lírico e emotivo de seus compatriotas, os quais, na minha opinião, têm formado uma espécie de “dream team” literário hoje. Dulce Maria Cardoso, José Luís Peixoto, Afonso Cruz, Gonçalo M. Tavares, Inês Pedrosa, Valter Hugo Mãe… formam um belo grupo. Se você gosta dos trabalhos deles e delas, pode pegar No meu peito não cabem pássaros para ler, que provavelmente vai adorar. Ao fim desse texto, deixarei um trecho maior do livro como amostra, mas uma frase como “O verdadeiro bilhete de um suicida é sua vida como ele a viveu” já serve para a gente ver que está diante de alguém que realmente sabe escrever, não é mesmo? Além do mais, Camarneiro foi vencedor do Prêmio Leya com seu romance posterior, Debaixo de algum céu.

Se há algum elogio a mais que eu possa fazer, é um dos maiores: antes mesmo de terminar a leitura desse romance, já comprei os outros dois livros dele disponíveis no Brasil. Ainda não tive a oportunidade de ler, mas não vejo a hora. O juiz de onde trabalho já me disse que Debaixo de algum céu é ainda melhor do que o No meu peito não cabem pássaros. É um veredito e tanto.

Trecho:

Há uma dor dentro que pede alimento e é isso que Karl lhe dá. Um mau amor é um fogo grande que só aquece se puder queimar o que toca. Um braço, uma perna, que lindo é o nosso amor, um sonho, um desejo de chamas altas direitas a nada. Os amores assim são acelerados, vão correndo sempre mais depressa em direção ao fim e ao fim de quem os não sabe escusar. Um amor que se sente em dor é uma doença dos sentidos que mata muitas vezes.

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No meu peito não cabem pássaros, de Nuno Camarneiro (Leya, 192 págs.)

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

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