* Por Rafael Gallo *

Em meio a minhas leituras de ficção, sempre tento incluir um ou outro livro que fale sobre escrita, especialmente pelo fato de eu – além de ser escritor – ministrar oficinas dessa área. Já li um número razoável de títulos desse tipo e, hoje, acho que posso dizer com uma certa segurança: os que mais senti me ensinarem não foram os “manuais de escrita” ou os compêndios de teoria literária, mas os textos escritos por escritores, os quais costumam oferecer menos “regras” ou “técnicas”, porém mais reflexões sobre o ato de escrever. Não é nenhuma apologia a um tipo de “lugar de fala” isso, ou à necessidade de experiência própria; também já li livros dessa categoria, da autoria de escritores, que me dão vontade de chorar, por serem tão ruins.

Para não gastar tempo falando dos ruins, prefiro citar alguns dos meus favoritos aqui: Do conto breve e seus arredores e Alguns aspectos do conto, ambos textos curtos de Julio Cortázar, incluídos no volume Valise de Cronópio (Ed. Perspectiva); A arte do romance (Ed. Companhia das Letras), de Milan Kundera; Confissões de um jovem romancista (Editora Record), de Umberto Eco e, agora, esse O romancista ingênuo e o sentimental (Ed. Companhia das Letras), de Orhan Pamuk, que acabei de ler. Desconfio que, mesmo sendo textos sobre a escrita, a leitura de todos esses poderia ser bem prazerosa e instrutiva mesmo para quem não escreve, dada a qualidade das ideias apresentadas.

No caso específico do livro de Pamuk, o livro é dividido em capítulos razoavelmente breves, que correspondem a uma série de conferências dadas na Universidade de Harvard. As seis partes focam em diferentes aspectos da escrita – em específico do romance – mas, como todo bom artista, ele mantém a macroestrutura intimamente ligada às microestruturas. Portanto, os diversos temas abordados se entrecruzam e se retroalimentam continuamente. É como se o tempo todo você estivesse olhando para o mapa inteiro do livro.

O conceito do título vem de um ensaio de Friedrich Schiller: “Sobre poesia ingênua e sentimental”. Essa divisão – embora não exatamente dicotômica, como Pamuk bem aponta – trata das diferenças entre o que, grosso modo, poderíamos traçar entre a escrita que surge, do lado chamado de ingênuo, “espontaneamente, quase sem pensar” e, do outro lado, o chamado de sentimental, a de quem “está extremamente consciente do poema que escreve, dos métodos e técnicas que utiliza e do artifício envolvido no seu empreendimento” (citações do livro). Acho que não é nenhum spoiler muito sério se eu adiantar que Pamuk propõe a tentativa de se equilibrar os dois lados, certo? Yin e Yang.

Além desse par de conceitos (que, a bem da verdade, não são exatamente centrais no livro), Pamuk fala bastante sobre como a leitura de romances exerceu forte influência na formação intelectual e afetiva dele, sobre como há uma força política em exercitar a imaginação, especialmente ao se tentar compreender e experimentar – ainda que ficcionalmente – realidades diferentes das nossas. Considerando-se que ele fala a partir de um país “periférico” (Pahun nasceu e cresceu na Turquia), há muitos traços do lugar social do escritor com os quais podemos nos identificar. É memorável a passagem em que ele fala de como sempre pareceu diferente, para ele, a forma como os escritores estadunidenses podiam lidar com a própria escrita, dizendo o que quisessem, sem muitas preocupações sociais ou com a forma em que tais ideias poderiam rebater na sociedade. As diferenças entre estar do lado hegemônico ou não.

Algumas das ideias mais interessantes sobre escrita, em termos mais diretos, vêm dos exemplos que Pamuk cita, especialmente do início de Anna Kariênina, de Tolstói, em que as descrições ao redor da protagonista, no vagão de trem ou da paisagem na janela, não se tratam apenas de descrições “literárias”, mas do retrato dos sentimentos e de para onde se volta a atenção de Anna, que não consegue focar no livro aberto em seu colo. A partir daí, Pamuk desdobrará muitas reflexões sobre como objetos, paisagens e ações que cercam as personagens podem servir como elementos expressivos de quem elas são.

Outra ideia bastante importante – e nem sempre tratada em textos sobre escrita – é o que ele chama aqui de “centro secreto” do romance (Borges utiliza o termo “tema”, Cortázar, frequentemente, lança mão da ideia de “núcleo”). Pamuk dedica a seção final a esse aspecto, depois de tê-lo mencionado ao longo de todo o livro. Esse “centro”, de difícil definição, seria o grande “motivo” do livro, seu “coração”, nem sempre (quase nunca) visível, mas presente o tempo todo, tanto para o leitor quanto (deveria estar, ao menos) para o escritor. É a “razão de ser” do livro, mais do que os cenários onde ele se situa, a trama abordada ou os personagens elencados para representarem a história sobre a qual esse “centro” se funda.

Mesmo que você não tenha pretensões de se tornar escritor, acho que esse livro pode ser uma leitura interessante, pelo que oferece de reflexões e aprimoramentos da atividade de leitura. Se tem vontade de escrever, pode colocar na sua pilha de leituras (sim, aquela que nunca para de crescer) e, de preferência, em uma posição privilegiada. É leitura para se terminar em dois dias, mas pensar sobre ela por muitos dias depois.

Trecho:

Há algo de tão especial em escrever e ler romances, um aspecto ligado à liberdade, imitar outras vidas e imaginar-se como outra pessoa, que eu gostaria de me demorar um pouco nesse ponto ético. Um dos aspectos mais prazerosos de escrever um romance é a constatação de que o romancista muda pouco a pouco, enquanto deliberadamente se coloca no lugar de suas personagens e enquanto realiza pesquisas e usa a imaginação. Ele não só vê o mundo pelos olhos de seu herói, como acaba se parecendo com seu herói! Outro motivo que me faz amar a arte de escrever romances é que ela me obriga a ir além do meu próprio ponto de vista e me tornar outra pessoa. Como romancista, tenho me identificado com outras pessoas e saído das fronteiras de meu eu, adquirindo um caráter que antes não tinha. Nos últimos 35 anos, escrevendo romances e colocando-me no lugar de outras pessoas, tenho criado uma versão mais depurada e mais complexa de mim mesmo. 

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

 

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