* Por Rafael Gallo *

Às vezes, deixo na cabeceira da cama algum livro de contos ou poemas, que me sirva como leitura breve e “respiro” de algum romance ou algo assim, que esteja lendo em paralelo. Quando coloquei nesse posto o Vésperas (Ed. Rocco), da Adriana Lunardi, não imaginei que fosse gostar tanto, a ponto de passá-lo à frente da minha “leitura principal”. Acontece que essa coletânea de contos é sensacional e eu não consegui desgrudar.

Todas as histórias estão ligadas por dois eixos: o tema da morte e o fato de serem inspiradas em casos reais de escritoras. Cada conto centraliza-se em uma delas e recebe seu nome (ou apelido) no título. Virginia Woolf, Dorothy Parker, Ana Cristina Cesar, Clarice Lispector, e outras, têm ficcionalizados seus últimos dias – as vésperas do óbito – ou algum outro acontecimento influenciado por suas mortes (e suas vidas, a bem dizer).

A escrita de Adriana demonstra um cuidado muito fascinante com as palavras, trazendo várias frases e expressões que valem ouro. Em um dos melhores contos do livro, Virginia Woolf é mostrada ao sair de casa, para cometer suicídio, e “os móveis escuros repousam agora na mais perplexa solidão”. Em outro a ser destacado, uma garota, admiradora de Clarice Lispector, vai ao túmulo da escritora no Rio, por se identificar tanto com ela. A passagem, narrada em primeira pessoa, então descreve o encontro: “Tinho ido até ali para vivê-la, para fazer-me do que gosto, ceder à mínima manifestação do meu ser difícil, áspero, desesperado. Sobretudo, tinha ido ali para me filiar.”

Adriana busca ainda variar bastante as abordagens narrativas e de protagonistas entre as histórias. Algumas, como as inspiradas em Clarice e Sylvia Plath, mostram personagens distantes das tais escritoras, mas que têm alguma experiência em relação a elas, alguma espécie de aproximação; outras, como a de Virginia Woolf e Katherine Mansfield, colocam-nas como protagonistas, mostrando-as em seus últimos momentos. E ainda há casos como o de Dorothy Parker, em que a narração é posta do ponto de vista do cachorro dela, Troy, única companhia em seu fim. Creio ser esse o melhor texto que já li com o foco da narração em algum animal. O narrador não é ele – é uma voz onisciente em terceira pessoa – mas a “forma de ver o mundo” se dá, em grande parte, aos modos do cachorro: sem larga compreensão das coisas, sem grandes lastros de memória e desvendando tudo através de cheiros, hábitos e sensações primárias.

É, sem dúvidas, uma das escritoras mais habilidosas que já li. Mal vejo a hora de ler os outros livros dela. O próximo já está comprado.

Trecho:

Sinto-me infinitamente mais à vontade sem ninguém por perto. As coisas começam a ganhar sentido. Preciso de calma para senti-las, para saber o que significam, se gosto ou não delas. É tão demorado acostumar-se com o novo, que parece não haver tempo suficiente para isso. Em vez de viver, verbo irresponsável demais para tanta exigência, a gente deveria dizer estou me dedicando, como em um trabalho difícil, desses que exigem cada uma das horas do dia.

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto “Réveillon” para o espanhol

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