* Por Hugo Almeida *

O próximo ano será marcante para a literatura brasileira, data do centenário de nascimento de Clarice Lispector (1920-1977) e dos 60 anos de publicação de Laços de família, uma de suas obras-primas. Dois livros recentes de certa forma antecipam as comemorações, Todas as crônicas (Rocco, 704 págs.), com organização e posfácio de Pedro Karp Vasquez, e O Rio de Clarice – Passeio afetivo pela cidade (Autêntica, 192 págs.), de Teresa Montero. Um belo início, 900 páginas de ouro. Neste ano e em 2020 vários outros trabalhos, de e sobre Clarice, deverão lembrar a data, honrar a memória da escritora e enriquecer sua fortuna crítica. Para a alegria da grande e crescente legião de admiradores da autora de A hora de estrela.

Todas as crônicas O Rio de Clarice encantam o leitor não só pela esmerada edição visual, mas também pela riqueza de informações, além, é claro, do olhar e dos enigmas da escritora por ela mesma. O projeto gráfico e o cuidado editorial de Todas as crônicas seguem o alto padrão de Todos os contos, volume organizado por Benjamin Moser lançado pela mesma editora em 2016. Como se sabe, Clarice reaproveitou crônicas em contos ou em partes de romances e republicou, refeitos ou não, vários textos em diferentes jornais e revistas, em datas às vezes distantes. As repetições e variações foram evitadas no livro. Com o informativo e essencial prefácio de Marina Colasanti, que cuidou das crônicas de Clarice no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973, sem mexer numa vírgula sequer, como pedia a autora; o substancioso posfácio de Vasquez, e a rigorosa pesquisa textual de Larissa Vaz, Todas as crônicas traz o resultado de longo e minucioso trabalho de uma equipe orquestrada, paciente e tenaz. Valeu a pena o esforço. Agora temos organizados por data e veículos de imprensa mais de 120 textos claricianos antes inéditos em livro.

Nas crônicas, Clarice por vezes abre mão da máscara da narradora de contos e romances e evidencia ainda mais seu universo enigmático, misterioso, embora fizesse questão de se declarar uma pessoa simples, sem vocação para mito nem celebridade – verdade que não se pode contestar. Em tudo que fez, a escritora transitou da “suave pantera” à “fera que há dentro dela”, como escreveu Marly de Oliveira em poema transcrito por Clarice na crônica publicada em 18 de fevereiro de 1970. Ora semelhantes a prece, ora relato ficcional ou real do cotidiano, impressões ou emoções, e até desabafo, as crônicas evidenciam que a autora “se afasta sem hesitar do perfil do cronista tradicional”, como afirma Pedro Karp Vasquez no posfácio.

Avessa a depoimentos a jornalistas, Clarice acaba por se encantar com uma entrevistadora (“A entrevista alegre”, de 30 de dezembro de 1967):  “É noiva. Que pena, pensei. Gostaria que ela ficasse bem sentadinha esperando durante muitos anos que meus filhos crescessem para um deles se casar com ela”.

Escreveu na crônica “O grito”, de 8 de março de 1968: “O que farei de mim! Quase nada. Não vou escrever mais livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades tão duras que seriam difíceis de serem suportadas por mim e pelos outros”. Depois disso, publicou mais de dez livros, muitos com duras e necessárias verdades. Na mesma época, declarou assim sua admiração por Chico Buarque: “Fico simplesmente feliz em ouvir quinhentas vezes em seguida ‘A banda’, e um dia desses dancei com um de meus filhos”. Na crônica “Rispidez necessária”, ela revela as duas broncas que recebeu do dr. Fabrini (e dá razão ao médico) enquanto convalescia no hospital da queimadura que sofreu em 1966.

Nas crônicas claricianas, realidade e ficção convivem em harmonia. “A mesa de 13 comensais”, sobre um relato que Clarice ouviu de Giorgio de Chirico, autor do célebre e maravilhoso retrato a óleo da escritora feito em Roma em 1945, mais parece um conto de Borges. Clarice não escreveu poemas? Escreveu. Basta conferir “A mágoa” e “O menino”. É fácil garimpar outras pepitas no livro, ouro de aluvião, página após página, algo natural em Clarice Lispector.

O Rio de Clarice

O livro de Teresa Montero, autora do pioneiro e precioso Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector (1999), nasceu dos passeios “O Rio de Clarice” (www.oriodeclaricelispector.com.br), do projeto Caminhos da Arte no Rio de Janeiro, que ela criou em 2008. A beleza do livro começa na capa, Clarice e seu filho caçula, Paulo, na praia do Leme, na década de 1960, uma cena rara da autora de Água viva. No verso da capa, a pintura Explosão, da própria Clarice Lispector. E no interior do livro, uma belíssima sequência de fotos da escritora e de lugares que ela frequentou no Rio e a inspiraram, como o Jardim Botânico e o Cosme Velho. O projeto gráfico de O Rio de Clarice tem a selo do talento do designer Diogo Droschi. Muito bonito o aproveitamento – sobretudo na última página – da imagem de Ulisses, o cão de Clarice esculpido ao lado da escritora por Edgar Duvivier. A obra está na praia do Leme desde 2016.

Teresa Montero percorre e detalha o roteiro dos caminhos claricianos por bairros em que morou a autora de Perto do coração selvagem, em cuidadosa e aprofundada pesquisa geográfica e histórica, com mapas, fotos e indicação de ruas, prédios e outros lugares frequentados por Clarice. Teresa enriquece o roteiro com citações de antológicos trechos de livros, crônicas e entrevistas da escritora. Como não podia deixar de ser, o capítulo mais longo, de 64 páginas, é dedicado ao Leme, bairro onde Clarice Lispector morou de 1959 a 1977 e escreveu a maior parte de sua obra. Teresa lembra que a romancista gostava de se referir ao bairro como a cidade do Leme.

Ali, entre as montanhas e o mar, Clarice encontrou seu porto seguro. No bairro viveram também outros grandes escritores e artistas, como Manuel Bandeira, Ary Barroso, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop e sua companheira Lota de Macedo Soares. Teresa Montero fala dos encantos do Leme, festivo polo boêmio de artistas em início de carreia, entre eles João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Chico Buarque, mas não deixa de registrar o outro lado: “Olhando de cima não se pode ter uma ideia real do duro cotidiano dos moradores das comunidades da Babilônia e do Chapéu Mangueira”. O Rio de Clarice traz uma resumida cronologia da escritora, a lista de seus livros e uma rica bibliografia de referência. Como a obra de Clarice, um trabalho de ouro.

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Hugo Almeida, escritor e jornalista mineiro residente em São Paulo, é doutor em Literatura Brasileira pela USP. Publicou vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Scipione, 1988), Prêmio Bienal Nestlé-1988

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