Na trilha do crack

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Fundado em trabalho de campo realizado, em Campinas e em São Paulo, pela antropóloga Taniele Rui, durante dois anos e meio, o livro Nas tramas do crack (editora Terceiro Nome) traz revelações sobre o uso da droga, estimuladas pela audácia analítica da autora, por sua compaixão pelos sujeitos pesquisados, pela visão arrojada da pluralidade de relações e de dispositivos que envolvem o uso do crack. Apresentado como tese de doutorado, recebeu o Prêmio Capes de Tese 2013.

Leia a seguir um trecho do volume que acaba de ser lançado:

“Ao rés do chão, com passos

Descemos da Kombi branca da Secretaria de Saúde de Campinas. Eu, dois redutores de danos, uma médica e uma enfermeira. Era dia de vacinação contra tétano e também seria dada a primeira, das três doses necessárias, da vacina contra hepatite B aos usuários de drogas atendidos pelo PRD. Era meu primeiro dia de pesquisa e eu estava vestida tal qual a equipe havia me orientado (com uma camiseta não decotada, calça comprida e tênis). Caminhamos por uma trilha feita pelos passantes e chegamos à linha de trem. Ao longo dessa linha e de suas duas margens se iniciava o campo do Paranapanema.

Assim que comecei a andar pela linha, com passos que eram combinados com os espaços dos trilhos de ferro, minhas pernas tremeram. Entendi por que tinha de ir de tênis, embora as pessoas que cruzaram comigo depois estivessem descalças ou calçando chinelos. Aos pés, além dos trilhos, pedras e muito lixo. Nas duas margens da linha, o mato estava grande. Seguíamos os cinco pelo meio. Algumas passadas e comecei a ver os primeiros mocós: as pessoas abriam caminhos por entre o mato, colocavam fogo em algumas partes para diminuí-lo e faziam dali um lugar para o consumo de crack, maconha e cocaína. Era uma terça-feira, mais ou menos quatro horas da tarde. Alguns mocós estavam vazios. Fui em direção a um deles para melhor observar: muitos plásticos verdes e pretos recortados em formato quadrado pequeno, palitos de fósforo, isqueiros, restos de alimentos, roupas, cobertores, cartões telefônicos, alguns tocos de madeira, latas de alumínio grandes, latas de refrigerante, excreções humanas e sacolas plásticas despedaçadas. Além desses elementos comuns, cada um dos que fui vendo na sequência era organizado de um jeito. Um tinha compensados de madeira forrando o chão, evitando o contato direto com a terra. Em outro, cobertores foram amarrados entre dois galhos de árvore, buscando fugir do insistente sol de fevereiro. Passamos por uns três ou quatro vazios antes de eu ver alguém.

Quando vi as primeiras quatro pessoas acocoradas em roda, com cachimbos na mão, eu não soube como me comportar. Fiquei um pouco envergonhada, como que não querendo olhar. Achava que eu não tinha o direito de vê-las. Acabei por tentar me adequar ao modo como elas próprias se comportavam. Algumas nos cumprimentaram, recusaram a vacina e seguiram o que estavam fazendo. Outras viraram as costas para continuar o seu uso; para estas, os redutores não ofereceram vacina. Houve ainda aquelas que se mostraram receptivas, nos chamaram para ir até os seus mocós e enfatizaram a importância daquele trabalho: “só vocês mesmo para se preocupar com a gente e para vir neste lugar”. Essas começaram a chamar os amigos que passavam para tomar vacina também.

Logo já estávamos em uma roda de doze pessoas. E começamos então a ter conversas divertidas que giravam em torno do medo que alguns demonstravam diante da injeção. Enquanto um tomava a vacina, o restante prestava atenção na sua feição quando do contato da agulha com o braço. Aqueles que demonstravam dor, logo recebiam piadas irônicas dos outros. O clima começou a ficar descontraído. De minha parte, ajudei segurando um saco preto de descarte dos algodões sujos e uma caixa especial onde eram depositadas as seringas e as agulhas utilizadas.

Terminando o trajeto da linha de trem, embaixo de uma ponte, entramos por uma viela no bairro. Nas ruas seguintes à linha, as casas são autoconstruídas, algumas de madeira, outras de tijolos ainda no reboque; o acesso para as ruas principais é feito mediante uma escada. Olhando para cima, vê-se o emaranhado de fios que levam a energia elétrica para essas casas. Ruas de cimento colocado pelos próprios moradores, uma parte pequena ainda de terra; muitas crianças brincando. Andando por esse pedaço do bairro, tem-se a certeza de estar, como escreveu Tereza Caldeira (1984), no “local de moradia das camadas mais pobres da população”. Passamos pelas escadas, pelos canos que são colocados por fora das casas e andamos até as ruas mais largas; asfalto e iluminação pública começaram a aparecer. Andávamos e parávamos sempre que alguém queria tomar vacina ou conversar com os redutores. Um jovem negro veio nos contar que a polícia matara seu irmão na semana passada. Seguimos por duas praças, por cerca de quatro igrejas evangélicas de tipos, formatos e nomeações distintas, quatro bares, um depósito de materiais recicláveis, por pelo menos (que eu consegui identificar) cinco pontos de venda de drogas, alocados em esquinas estratégicas, e pegamos a perua, que nos esperava na segunda praça. Ao fim do bairro, uma faixa já desgastada estava estendida com os dizeres: “Alfavela: é simples, mas não é fácil. É de coração. Apoio: Família (2000-2008)”.

O trajeto todo durou quase três horas. Na contagem da redução de danos foram vacinadas 57 pessoas, todas elas classificadas como usuárias de drogas.

Assim que chegamos na sede do programa, fui orientada a também me vacinar contra hepatite B. Soube ali que essa vacina, na idade adulta, era oferecida gratuitamente apenas a grupos específicos, entre eles usuários de drogas e profissionais da saúde. No meu caso, a justificativa era de que eu estaria em constante contato com uma população vulnerável. Naquele dia, também eu tomei a primeira dose.

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O estudo de uma área “pobre e degradada”, que “para o resto da cidade é uma área misteriosa, arriscada e deprimente” (Whyte, 2005, p. 19), ou “de um bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetes dos jornais como um dos focos da violência urbana, um antro de marginais e de bandidos” (Zaluar, 2000, p. 9) é um tema clássico e atual, que esteve na base da própria constituição da chamada antropologia urbana (no seu movimento de aproximação e distinção dos estudos da sociologia urbana), sobretudo se, tal como fez Frúgoli Jr. (2005), seguirmos um percurso intelectual que nos remete à Escola de Chicago e à (re)configuração desse campo de pesquisa no Brasil.

Diferentemente desses estudos, porém, eu não tinha a pretensão inicial de pesquisar um bairro, um conjunto de bairros nem mesmo uma área urbana específica; o meu interesse, como indicado no primeiro capítulo, era pesquisar usuários de drogas nos seus próprios contextos de uso. A maneira que julguei mais apropriada, de acordo com proposições teóricas e empíricas já explicitadas, foi acompanhar os programas de redução de danos, cujo trabalho implica em caminhar na direção dos usuários. Durante seis meses, percorri exclusivamente o trajeto do Paranapanema, de antemão já traçado pela equipe: seguíamos pela linha de trem, adentrávamos no bairro pelas vielas da favela, passávamos pela parte onde estão as casas com melhor infraestrutura e pegávamos o ônibus ao final do percurso (a perua Kombi, a médica e a enfermeira só comparecem em dias de vacinação – três vezes ao ano).

Como também já mencionado, a constante interação com essa equipe somada às mudanças no repasse de verba me levou a participar de seus outros campos de atuação. A partir daí, becos, praças públicas, cantos de rua, espaços cavados em meio à terra em toda a extensão de linhas de trem, viadutos, beira de córregos e construções abandonadas passaram a fazer parte do meu cotidiano de pesquisa em Campinas. Igualmente na “cracolândia”, em meio ao centro de São Paulo, os usuários de crack conviviam com a demolição de quarteirões inteiros, ficavam ao lado dos escombros, ocupavam prédios que literalmente caíam aos pedaços, enfim, coexistiam com grande quantidade de dejeto humano e urbano.

Inicialmente, fazer uma investigação em tais espaços exigiu de mim – o que já exigia dos redutores – esforço físico e certa habilidade de andar por trilhas, pedras, alguns relevos e subir em construções inacabadas que não tinham uma “porta” de entrada rente ao chão. Muitas vezes me dirigindo a tais locais, comecei a notar que eles eram compostos por uma instigante repetição dos mesmos objetos. Além de materiais de demolição que nunca foram retirados, havia também centenas de papéis que embrulham o crack, palitos de fósforo, isqueiros, restos de alimentos e de roupas, cobertores, cartões telefônicos usados para a separação das porções de crack ou cocaína, alguns tocos de madeira que usam para sentar, chapas de alumínio que servem de apoio para preparar e separar a droga, latas de refrigerante e embalagens de iogurte usadas como cachimbo, garrafas, excreções humanas. A repetição desses materiais, definitivamente, reorientou minha forma de caminhar pelas cidades: passei a andar de cabeça baixa, procurando tais elementos, em busca de pistas de onde os usuários pudessem estar. De maneira inconsciente, reproduzi os gestos que, na acepção de Ginzburg (1989), talvez sejam os mais antigos da história intelectual: observar resíduos, dados marginais e pormenores considerados sem importância e triviais.

Buscando falar com pessoas em incontáveis visitas, o que mais me marcava era a repetição dessa paisagem. Paisagem igualmente semelhante já chamara até a atenção de Richard Sennet, que, em seu belo ensaio sobre Carne e pedra, ou melhor, sobre cidade e corpo, dedicou uma especial atenção à “desdentada Rivington Street [em Nova York], cujas construções abandonadas servem de esconderijo aos viciados, que ali praticam sua roleta-russa” (2008, p. 359). Também Taussig teceu reflexões sobre esse “mundo dos mendigos, no qual o “terror encontra a perfeição”: “esparramados em cima dos montículos de lixo da cidade”, envoltos por “vidros quebrados, latas de sardinha, abas de chapéu de palha, pedaços de papel, couro, trapos, louça quebrada, livros encharcados, colarinhos, casca de ovo, excremento e inumeráveis manchas de escuridão”. Segundo Taussig, são esses entulhos, “signos espalhados da cidade”, que põem a nu a arbitrariedade do poder (1995, p. 28).

São ainda pórticos, no linguajar conceitual de Magnani, “espaços, marcos e vazios na paisagem urbana, que configuram passagem. Lugares que já não pertencem à mancha de cá, mas ainda não se situam na de lá; escapam aos sistemas de classificação de uma e outra e, como tal, apresentam a “maldição dos vazios fronteiriços”. Terra de ninguém, lugar de perigo, preferido por figuras liminares e para a realização de rituais mágicos – muitas vezes, lugares sombrios que é preciso cruzar rapidamente, sem olhar para os lados. (2002, p. 23)”

Como mostram as observações de Sennet, Taussig e Magnani, a ocupação de tais espaços não é propriamente uma novidade empírica, na medida em que parece compor tanto a paisagem e o cotidiano das grandes cidades quanto um cenário mítico de terror e arbitrariedade política. Ainda assim – ou justamente por isso, no caso da minha pesquisa –, não imaginei que esse pudesse ser um “dado” a passar despercebido em termos analíticos.

Pelo seu afastamento e, em alguma medida, isolamento, tornam-se tipos de espaço que garantem a possibilidade de privacidade no uso de crack – o que faz com que muitos usuários da droga sigam para eles apenas para consumir a substância, voltando depois para os seus afazeres ou para os lugares que consideram mais significativos. A fala de um usuário, colhida na linha do Paranapanema, é relevante para compreendermos a relação que tais pessoas podem estabelecer com o local:

Eu acordo e já fico louco, arrumo cinco reais e já venho comprar uma pedra e uso uma, duas horas, depende de quantas pessoas estão aqui pra dividir. Aí tenho que sair para a rua pra arrumar mais dinheiro, limpo as calçadas das pessoas que moram aqui perto, tiro a grama que cresce no cimento (nesse momento mostra suas mãos sujas, calejadas e ásperas), e elas me ajudam, dão um, dois reais, e eu vou juntando. E quando eu volto pra cá eu não paro mais. Fico aqui até meu corpo não aguentar. Dois, três dias diretos. Sem comer, sem beber, sem dormir. Daí paro, dou um tempo, volto para a minha laje, durmo dois dias seguidos, como e depois venho para cá de novo. 

O estado descrito no qual se fica usando crack “dois, três dias diretos, sem comer, sem beber e sem dormir” é chamado pelos usuários da droga de hibernação. Quando fiz a pesquisa junto aos meninos e meninas em situação de rua, era muito comum, ao perguntar sobre algum deles que não via há um tempo, obter como resposta: “ele está hibernado, tia, já já ele volta”. Na região da “cracolândia”, relatos semelhantes de que “faz cinco dias que eu não durmo” eram igualmente frequentes. Em alguma medida, penso que esse estado contínuo de hibernar e “voltar a si” pode ser indicativo da gestão que fazem sobre o uso, uma vez que o “voltar a si” parece indicar um cálculo e um reconhecimento do estado corporal e da fragilidade física. É também uma forma pela qual o usuário de crack reconhece os riscos a que se expõe quando em contato direto e intenso com a substância – o que abordarei no capítulo V. Nesse sentido, pela sua própria especificidade espacial, a linha de trem, por exemplo, se torna um lugar que propicia tal estado de hibernação. Afastada do centro da cidade, bem como dos olhares dos transeuntes e dos policiais, os usuários da droga têm ali um local onde podem usar o crack e experienciá-lo na sua forma mais extrema e radical, nesse contínuo movimento de hibernar, dar um tempo, se cuidar e voltar a hibernar.

Também chama a atenção na fala desse usuário a separação entre a linha de trem (onde hiberna) e a sua laje, no caso dele a laje de um supermercado não muito distante dali (para onde volta quando quer se cuidar). Conhecido do proprietário, ele fica no local e, nos dias em que dorme lá, oferece “segurança”. Essa laje é a sua referência de morada: é para onde volta depois de ter consumido crack em demasia. Nota-se, pois, que o movimento de interrupção do uso implica um afastamento do espaço de consumo. Ou seja, ainda que alguns usuários passem, por exemplo, pela linha de trem apenas para comprar drogas ou para um consumo rápido, o local também permite aos usuários contínuos da substância se estabelecerem aí durante muitas horas dos seus dias sem ser, contudo, um lugar eminentemente de moradia. Por sua vez, tal constatação não impede que muitas pessoas, em determinado momento de sua trajetória de uso, fiquem ali a maior parte de seu tempo. Mas o que interessa é que, uma vez se estabelecendo com frequência nesse espaço, acabam por se inserir em redes de relações e de prestações sociais infinitas e desenvolvem aproximações provisórias fundamentais para a sobrevivência física.

Especialmente no que tange às atividades que se ligam aos mercados ilícitos, o fenômeno da territorialização não é nenhum pouco banal. Como já mostrou Michel Misse (2007), é verdade que as redes sociais que interligam mercados legais e ilegais não necessariamente adquirem contornos espaciais; sabe-se que elas percorrem completamente todo o conjunto do tecido social, econômico e político tanto local quanto global. Contudo, diz Misse, quando algum contorno espacial se desenha, quando uma territorialização pode ser identificada, a questão parece ganhar uma dimensão política completamente diferente daquela que existe de forma pulverizada. O autor nos fala ainda que, se por um lado essa territorialização reforça estereótipos e estigmatiza importantes segmentos sociais do espaço urbano, por outro ela cria novas redes de sociabilidade que emergem das relações de poder que demarcam esses territórios.

Para abarcar tais espaços na complexidade que os encerra, não optei por uma versão específica de antropólogo nem por uma concepção estrita da antropologia, entre a pesquisa das cidades ou nas cidades, entre um olhar panorâmico ou um olhar de perto e de dentro (Magnani, 2002) – discussão que, ao fim, só parece indicar uma tomada de partido analítica e ignorar aquilo que desde Simmel (1983) já aprendemos, isto é, que as relações espaciais são produto, condição e símbolo das relações humanas. Desse modo, considero mais interessante entender a dinâmica de tais espaços na interação deles com os usuários de crack e com outros atores urbanos.

Pois, assim como os corpos desses usuários, também tais espaços se tornam abjetos, imitam e propulsionam a ambiguidade: locais onde consumidores da droga podem encontrar abrigo e proteção durante o uso, também oferecem perigo para eles e para os que por ali passam; são alvos de violência e promotores dela. Os usuários estão lá ora porque foram expulsos de outros lugares, ora porque os tomaram como refúgio, espécie, portanto, de degredo e autodegredação.

Seguindo meus propósitos, julguei não ser conveniente perguntar sobre os motivos que fizeram os usuários de crack se dirigirem para tais espaços, pela simples razão de que os motivos que os levaram para lá não são os mesmos que os fizeram permanecer. Avaliei ser mais proveitoso indagar como, com quem e de que modo eles estabelecem relações estando ali, pois, uma vez em tais espaços, não há como ignorar o fato de que têm que criar e contar com aproximações conjunturais, necessárias, no limite, para a manutenção da vida.

De modo ainda mais abstruso, o exame de tais espaços carrega o desafio de enfrentar, a despeito da semelhança visual dos materiais e dos lugares, as diversas territorialidades que cada um deles especifica – o que nos tira da semelhança das abstrações formais e nos devolve ao emaranhado das interações concretas. Visando perseguir tal desafio, organizei esta segunda parte do livro de modo a apresentar ao leitor, nos capítulos subsequentes, três cenários de uso: a linha de trem do Paranapanema, o prédio da Vila Industrial (ambos na cidade de Campinas) e o espaço público conhecido como “cracolândia”.

A escolha por tais espaços correspondeu mais aos meus escopos interpretativos que propriamente a um critério comparativo, balizado pela igual quantidade de material empírico. Os três espaços são muito distintos nesse aspecto. Passei cerca de quinze meses indo ao Paranapanema, seis meses indo à “cracolândia” e apenas um único dia visitei o prédio da Vila Industrial. Igualmente, as informações e estudos sobre esses espaços não se equivalem: quase nada encontrei sobre os dois primeiros, uma vez que, diferentemente da capital paulista, a cidade de Campinas e os dois bairros em tela pouca atração exercem. Desse modo, muito do que descobri sobre eles se deve aos jornais locais. O contrário pode ser dito sobre a “cracolândia”: junto a investimentos midiáticos, imobiliários, políticos e sanitários, há paralelos investimentos acadêmicos. Ainda, a opção pelos cenários narrados não se resume aos locais visitados. Fui em pelo menos mais quinze. Descrever todos é tarefa da ordem do impossível.

O objetivo da escolha desses três é, portanto, outro e, lembrando o já escrito, incorre em uma tentativa de interpretação. A partir da descrição das distintas interações que mais marcadamente caracteriza cada um deles, pretendo colocar em relevo três territorialidades de uso de crack, visando argumentar que, embora criem paisagens aparentemente semelhantes, um olhar mais aguçado nos permite concluir, de outra via, que faz diferença consumir crack e produzir tal territorialidade em uma linha de trem próxima a um bairro de intenso comércio de drogas em consonância com as orientações do PCC, em uma construção abandonada em um bairro residencial ou em um local público tal como o é a “cracolândia”. Meu argumento é o de que, uma vez se estabelecendo nesses locais, os usuários de crack evocam limites em interações específicas, que envolvem níveis distintos e diferenciados de violência física e simbólica, gestão social e policial, segregação espacial e moral. Em suma, a razão de tal escolha é mostrar que cada um desses territórios torna tais usuários abjetos de um tipo de relação.

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Antes de entrar nas descrições que enfrentam as hipóteses mencionadas, é preciso ainda salientar que tais locais, longe de se configurarem apenas espaços de observação, me ofereceram, sobretudo, os parâmetros da interação. Em duas ocasiões, enquanto caminhava por outros espaços da cidade de Campinas, encontrei os usuários de crack com os quais estabeleci contato ao longo das visitas. Na primeira vez, eles não me cumprimentaram. Na segunda, eu tentei a aproximação, saudando a pessoa pelo nome. Ela, especificamente, veio me perguntar de onde eu a conhecia, e respondi: “da linha de trem. Do Programa de Redução de Danos, lembra?”. Em troca, ouvi apenas um “ah!”. Ela demonstrou certo constrangimento e saiu andando. Não gostava de ser reconhecida por aquilo. O contrário também se passou. Muitos adolescentes e adultos, os quais já conhecia anteriormente através de instituições assistenciais, ficaram muito desconfortáveis ao me verem nesses espaços de usos. Pessoas que frequentavam o É de Lei, assim que me viam na “cracolândia”, tentavam justificar por que estavam ali. Na primeira oportunidade, logo vinham pedir desculpas por estarem “naquela situação”. Tais encontros me fizeram atentar para o fato não menos relevante de que também nossa relação era espacialmente marcada. Tratava-se, portanto, de uma interação que só era possível – desejável (ou não) – naquele contexto de uso.

Já para seguir, previno os que leem de que muitos nomes de pessoas e de lugares aparecerão no desenrolar dos dois capítulos subsequentes. Mais que configurarem uma generalização, o intuito é oferecer um vislumbre da heterogeneidade de tipos sociais que compõem o cotidiano desses espaços e, também, indicar as questões surgidas ao longo dessa curiosa sucessão de pessoas e paisagens.”

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Nas tramas do crack, editora Terceiro Nome, 400 págs., R$ 46,00

Taniele Rui é antropóloga, mestre (2007) e doutora (2012) pela Unicamp. Entre 2013 e 2014 realizou pós-doutorado financiado pelo Social Science Research Council (SSRC – EUA), no âmbito do programa de bolsas Drugs, Security and Democracy. Atualmente, realiza pós-doutorado junto ao Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap. Seus trabalhos enveredam pela antropologia urbana, perspectiva à luz das vidas e das situações limites