A Praga de Kafka

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Por Ricardo Bellissimo, de Praga *

A obra de Franz Kafka (1883-1924) muito provavelmente não seria a mesma caso ele não tivesse nascido em Praga, em fins do século XIX. Possível, ainda, que esta curiosa e enigmática cidade não atraísse tanta atenção hoje não fosse pela visibilidade que a obra deste escritor legou à cultura tcheca ao longo do século XX.

É difícil ainda não associar o quanto a escrita de Kafka foi sobremaneira influenciada pela política totalitária, muitas vezes repressora, imposta pelo Império Austro-Húngaro sobre os tchecos.

Todo esse período turbulento que antecede e se prolonga durante a I Guerra Mundial criou para si, a fim de resguardar as rédeas do próprio desmando, uma sociedade hierarquizada sob os ditames da mais rigorosa burocracia.

Tanta rigidez política foi especialmente sensível à Kafka, a ponto de oprimir seu imaginário e ver no Castelo de Praga o símbolo devastador da autoridade. Por ser ainda uma construção de dimensões faraônicas – é um dos maiores e mais belos do mundo -, é possível também enxergá-lo de qualquer ponto da cidade, incrustado que está na imponente colina Hradcany, onde a cidade foi fundada, em 850. Devido à sua onipresença, não causa estranheza que acabaria por inspirar seu romance O Castelo (obra póstuma publicada em 1926).

O protagonista é um agrimensor chamado K., que luta por razões muitas vezes desconhecidas só para ter acesso às misteriosas autoridades de um castelo que governa toda a vila. Sinistro e muitas vezes quase surreal, o romance foca justamente na alienação proporcionada pelo excesso de burocracia e, como decorrência desse controle excessivo, gera intermináveis tentativas, todas fracassadas, do homem comum em resistir ao sistema. O que ao fim o leva a remoer sentimentos de distorção da realidade, enquanto se desmotiva a enxergar qualquer significado minimamente lírico na vida.

A própria espacialização de um palácio repleto de aposentos, muros e pátios internos é semelhante ao mundo de Kafka: um universo labiríntico, confinado, em que diversas personagens – Josef K, de O Processo, é apenas mais uma delas – duelam em vão a fim de superar a vertigem com a impossibilidade de se verem ajudados.

Fábulas Negras

Da mesma forma, a burocracia excessiva do império é representada na ficção kafkaniana por meio de espaços cheios de cômodos escuros, portas, janelas, muitas escadas e corredores sem fim.

Aliando-se tais características ao caos apocalíptico reinante com os horrores da guerra, a representação agoniada do cotidiano, nos escritos de Kafka, parece ainda antecipar um estilo expressionista bastante peculiar de distorcer a indigesta realidade que o cercava. O tempo de sua narrativa como que então perde a coerência cronológica para se tornar uma ocorrência atemporal, e talvez por isso mais próxima à loucura.

Não à toa as suas narrativas, especialmente os contos, assumem a literalidade de uma fábula – o que, ademais, faz todo o sentido se considerarmos o fato de que a própria cidade onde Kafka viveu parece exsudar, a cada esquina, um ar tão sombrio quanto pitoresco. A orientação espacial dos inúmeros becos e vielas de Praga também são igualmente absorvidos pelo psicologismo labiríntico que esse escritor criara para as suas personagens.

Discussões Kafkanianas

Durante o período em que Praga esteve sob o jugo comunista, o legado da obra de Kafka foi tema de inúmeras discussões, todas muito acaloradas. As opiniões chegavam aos extremos.

Alguns estudiosos de sua obra diziam que ele quisera tão somente satirizar as trapalhadas burocráticas de um Império decadente, enquanto marxistas ferrenhos acusaram-no de distorcer a realidade com uma escrita confusa, que não chegava a lugar algum, e portanto inútil aos albores da revolução.

Polêmicas reducionistas à parte, qualquer tentativa de alocar os escritos de Kafka a um espectro político definido só tende a diminuir a importância de um dos escritores que mais a fundo se empenhou em ironizar, mas sobretudo assombrar, os efeitos nefastos provocados pelo excesso de estatismo.

O fiel conterrâneo

Talvez o único que de fato tenha propriedade respeitável para discorrer sobre a obra kafkaniana, é o igualmente escritor tcheco Milan Kundera.

Possivelmente, por ter se visto em situação análoga devido ao abuso do autoritarismo, sobretudo militar, e que tomou Praga de assalto durante a invasão soviética, esse conterrâneo de Kafka também soube, com maestria, dar voz ao homem das ruas em seus livros, em particular aqueles que pincelaram a Primavera de Praga como pano de fundo.

Assim, pela sua condição de testemunha frente a uma ditadura sanguinária, Kundera quis expressar, tal como Kafka um dia se expressou, sobre assuntos que lhes inquietavam particularmente o coração: a crise da modernidade inerente ao progresso, e como esse inapelável dilema influenciava diretamente na identidade do homem europeu, em sua maneira de amar, rir, sonhar, recordar, conviver ou até mesmo lidar com a morte.

Em meio a tais reflexões, Kundera ainda enaltece a importância do romance literário para salvar uma sociedade falida (“uma arte nascida do riso de Deus”, cita ele em A Arte do Romance, 1986). Por toda essa “ousadia” à liberdade de expressão, Kundera teve à época todos os seus livros banidos de Praga pelos comunistas.

Em outra de suas lúcidas divagações, Kundera diz que o humor surrealista que se encerra na obra de Kafka representa uma inversão radical do estilo literário russo, especialmente o de Dostoiévski, que então elaborava personagens punidas por um crime específico, às vezes premeditado. No enredo kafkaniano, as personagens são punidas mesmo que nenhum crime tenha sido cometido.

Escola de Praga

Releituras à parte, a perfeita simbiose de uma Praga real e imponente pode ainda ser constatada para quem passeia pelos cafés onde Kafka frequentou, especialmente o Louvre e o Savoy, situados na porção antiga da cidade. É possível ouvir, nesses locais, histórias de que ele lia para seus amigos esboços de suas obras, dedicando especial atenção às passagens mais humorísticas.

Junto com outros escritores da época, Kafka fez parte da chamada Escola de Praga, um movimento de criação artística alicerçada em princípios narrativos pontuais, destacando-se em especial uma forte atração pelo realismo, que deveria ainda ser dosado com abordagens metafísicas sem, no entanto, perder a lucidez necessária para descrever situações que mereciam ser satirizadas. A começar pela opressão das instituições oficiais, sobretudo no que se referia à soberba incorporada pela justiça imperial, e que disseminava consigo sentimentos difusos de insegurança na alma humana, a ponto de fazer qualquer aldeão desentender-se consigo mesmo diante o mais débil problema cotidiano.

A voz das ruas

Por isso tudo, as histórias criadas por esse judeu tcheco que escrevia em alemão acabaram por dar uma importante voz ao indivíduo comum que caminha nas ruas das grandes cidades.

O próprio protagonista de Metamorfose (1915), Gregor Samsa, é o homem tornado inseto frente à realidade urbana avassaladora, inoperantemente burocrática e que por isso acoberta seus equívocos com falsos ufanismos. Samsa incorpora, com sublime angústia, a sensação do homem que virou o inseto insignificante das cidades modernas, sobretudo numa época em que milhões de pessoas continuavam a morrer em campos de guerra.

A Eterna Praga de Kafka

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Ao contrário de certos países, em particular o Brasil, que desdenha até a memória de um lugar que por excelência deve assumir o papel de repositório do imaginário coletivo de uma nação ao anunciar que não há verbas para manutenção e limpeza de um dos mais importantes museus do país (como foi o recente caso ocorrido no Museu Nacional do RJ, enquanto rios sujos de dinheiros são desviados da maior estatal de petróleo para serem soterrados em piscinas e outras tantas contas no exterior, ao passo que a polícia vai se desdobrando para encontrar nomes cada vez mais esdrúxulos para batizar um sem número de operações corruptas), Praga concentra todos os seus esforços e honra para manter a memória de cada época de sua história eternamente viva e pulsante em qualquer poro da argamassa ancestral de suas portentosas igrejas, pontes, torres, palácios e castelos.

david cerny (Mijo)

E, com o mesmíssimo esmero, preservam a memória contemporânea. Uma das mais contundentes evidências disso pode ser conferida junto à série de esculturas Bebês-monstro, espalhadas pelo jardim do Museu Kampa, situado na Cidade Antiga. Criada pelo polêmico escultor tcheco David Cerný (o mesmo escultor que pintou um tanque soviético de cor-de-rosa como memorial de guerra no centro de Praga), a obra é formada por três estátuas de bebês gigantes que engatinham desorientados por não terem rostos, em uma alusão contestatória ao período comunista, cuja forte repressão faria os jovens crescerem sem uma identidade definida, autêntica. Esses mesmos bebês podem ainda ser vistos engatinhando em uma enorme torre de TV, na parte mais nova da cidade.

David_Cerny (Dedo médio)

Outra obra de Cerný pode ser contemplada logo na entrada do Museu Kafka. Sua escultura Mijo, de 2004, é formada por duas estátuas masculinas que urinam em cima do mapa da República Tcheca. Se alguém mandar um SMS para o número exibido aos pés da escultura, as estátuas desenham, com a água jorrada de seus pênis móveis, as palavras que a pessoa enviou. A obra é mais um protesto contra a corrupção remanescente do país desde os idos comunistas.

Kafka Estatua (Jaroslaw Róna)

Todavia, a escultura mais explicitamente crítica de Cerný é Violet (2013), um dedo médio gigante e roxo que faz o notório gesto obsceno. Está alocada numa base flutuante sobre o Rio Vltava, bem em frente ao Castelo de Praga, onde atualmente reside o presidente Milos Zeman, ex-militante comunista (1968-70). Com essa instalação, o escultor insinua que a obra fala por si ao mandar uma “saudação aos políticos de merda.” 

E como não poderia deixar de ser, a belíssima escultura em homenagem à Kafka, com 4m de altura, inaugurada em 2003 por ocasião dos 120 anos do nascimento do escritor, está situada na Old Town Square. Feita pelo também tcheco Jaroslaw Róna, a obra remete a um pesadelo recorrente em que o escritor se via perseguido por um monstro gigante, sem cabeça e mãos. Após tanto sonhar o mesmo sonho, Kafka anotou em um de seus diários: se a criatura não possui mãos nem cabeça, posso um dia dominá-la.

Um Exemplo de Memória

 Toda essa diversidade cultural que até hoje efervesce em Praga permite a mais harmoniosa convivência entre o antigo e o contemporâneo. E isto, sem dúvida, está intimamente associado à importância que se dá à memória marginal, mas igualmente ao silêncio respeitoso que se pode usufruir em locais públicos e privados.

Requisitos essenciais como esses contribuem, e muito, para que a história de uma cidade, um país, seja continuamente explorada e não desapareça de uma geração à outra. E é justamente esse tipo de memória que, ao fim, possibilita emergir a criatividade no seio de uma sociedade. Pois somente uma nação criativa está preparada para aceitar e a conviver com os riscos iminentes à adversidade. Mas este, sem dúvida, é o primeiro passo para que as diferenças aprendam a conviver honestamente e sem preconceitos.

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Ricardo Bellissimo é escritor, jornalista e historiador, autor dos romances Negro Amor e Sufoco, entre outros