Por Paulo Vasconcelos *

Uma vida

Há algumas pessoas que não passam ao lado da vida. Elas vivem, crescem e morrem questionando a vida em si, que, ao ser debulhada, ganha contornos de obra de arte. Assim, quando dizem, por um ofício, sobretudo o literário, dizem mais e de modo brando, seguro e poético, não como passado, mas como argamassa que lhe constituiu, na artimanha com a linguagem.

Assim foi a italiana Natalia Ginzburg [1916 – 1991] – escritora, poeta, ensaísta, autora de peças teatrais e editora, chegou a deputada em seu país. Nasceu em Palermo, e, mesmo diante de tragédias [seu marido, o editor e militante Leone Ginzburg foi morto por forças fascistas, aos 35 anos] e passagens por duas guerras, junto a si – através do pai, do marido, da família e amigos. trata os fatos com dores, mas com serenidade.

Sua obra soma mais de uma dezena de obras, mas os leitores brasileiros ainda não se debruçaram sobre a mesma, que não foram traduzidas in totum.

No Brasil, seus livros  somam a sete, contando com o último lançado por aqui – As pequenas Vvrtudes, 2015, Cosac Naify (Le piccole virtú, 1962), cuja tradução de Mauricio Santana é sensível e fiel, jovem que conhece a obra da escritora, e tem intimidade com a língua italiana desde seus trabalhos de mestrado à sua carreira dentro da literatura italiana.

O meu oficio nas pequenas virtudes

Na obra, a autora oferece ensaios que foram escritos para jornais e revistas, na Itália e em Londres. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, com seis ensaios – dentre os quais destaco três, sem desmerecer os demais –, Natalia se debruça sobre vários momentos de sua vida, desde o exílio dentro da própria Itália, em “Inverno em Abruzzo”; passando pela amizade com Cesare Pavese, no “Retrato de um amigo”, em que a autora se desfaz em carinho pelo mesmo, falando da sua jovialidade e seus poemas; e em “Ele e eu”, no qual se remete à relação com o segundo marido, Gabriele Baldini, suas aproximações e diferenças.

Na segunda parte, com cinco textos de natureza mais melancólica, encontra-se o ensaio sobre “As pequenas virtudes”, em que aborda a educação dos filhos e foca no que se constitui a virtude. Ainda de escrita belíssima e poética, em “Silêncio”, a autora revela as costas do silêncio e seus encontros com o mesmo dentro da criação literária. Contudo, o que me leva a uma vontade alucinante de escrever é “O meu ofício”, sobre o qual Ítalo Calvino diz ser “uma lição de Literatura”, na contracapa do livro.

Neste ensaio, Natalia faz uma espécie de genética de sua escritura. Cisca, como fazia na juventude, entre as palavras, para dizer os fundamentos de seus discursos e os emanta em sua própria vida, quase como consequência de um ato fisiológico, como bem observou Cesar Garboli, seu amigo e grande crítico Italiano:

Os níveis em que a fisiologia se manifesta e percorre a sua viagem mental se concentram todos na completude do ovo, multiplicando-se e “sucedendo-se”, a tal como fazem as vísceras. Em primeiro lugar, assiste à transformação o do tema fisiológico em corpo narrativo (trata-se do nível mais simples): o encontro com o mundo, a entrada na vida, o comer, o parir, a composição e o desdobramento da relação carnal com a realidade em um sistema contagioso de relações que são sediadas no próprio corpo… (Garboli apud Ginzburg, p.142, 2015)

Aqui, o crítico refina e deslinda a verdade da escrita ginzburguiana, como ato contínuo, muito mais de indagações dos seus impactos com a vida e que, portanto, dá sentido à implosão de sua subjetividade, manifesta na sua escritura, como forma de não sufocar, e esse corpo se manifesta literariamente por sua condição pensante, ela como nos cita e como artifício legítimo se utiliza das estruturas na terceira e primeira pessoa, para assim modalizar a escritura, como ela e um outro.

Em Natalia, há vários outros em seu ofício de escritora, sacudindo a memória, as estruturas imaginárias forjadas no seu viver para construir sua obra. E diz ela:

[…] O fato é que só sei escrever histórias. Se tento escrever um ensaio de crítica, ou um artigo sobre encomenda para um jornal, a coisa sai bem ruim. O que escrevo nesses casos, tenho que ir em busca penosamente fora de mim…E sempre tenho  sensação de enganar o próximo com palavras tomadas de empréstimo ou furtadas aqui e ali. E sofro e me sinto em exílio. Entretanto, quando escrevo histórias, sou como alguém que está em meu País, nas ruas que conhece desde a infância, entre as árvores e os muros que são seus. O meu oficio é escrever histórias, coisas inventadas ou coisas que recordo de minha Vida, mas sempre histórias […] (pág. 73, 2015)

Ao se colocar assim, faz uso da intimidade real, possível, para transgredi-la nas pontas e centro do seu imaginário de modo a constituir brechas da criação, modelando-a como uma espécie de óleo sobre tela abstrato, que pode aos poucos ganhar figuratividade ou não: apenas são pontos, tintas em multiformes apanhados num delito da narração, que contornam uma espécie de pré-roteiro narrativo e que se vai colorindo com outras tintas.

Nada é demarcado, o ponto inicial pode ser tudo: uma frase, um sentir que pede linguagem e assim vai se adequando, apoiado numa vivência existencial por onde se mistura a tudo e daí funda um texto que ela organiza, naturalmente.

Ao falar do seu primeiro conto, mostra uma face de sua composição, e assim ela diz que surgem personagens antigos, criaturas ingênuas e ridículas de outra era, fala de personagens como uma mulher, um homem de barba ruiva, que não sabe de onde vêm, mas adianta, e diz que os toma emprestados:

As palavras e frases de que me servira para eles foram pescadas assim, ao acaso: era como seu tivesse um saco e fosse tirando dele ora uma barba, ora uma cozinheira negra ou outra coisa que pudesse usar…”(pág. 77,2015)

Neste ensaio, a autora oferece uma contribuição aos estudos da criação literária, um depoimento sincero, sem rodeios. Por sua vez, como nos lembra Ettore Finazzi-Agrò, professor italiano e estudioso da literatura brasileira, em  O bordado da memória, posfácio de Léxico Familiar, 2009:

Natalia escondia ‘no seu avental’ a arma da memória de que se utilizou tantas vezes pra se vingar da história que lhe arrancou o mardo e pôs fim àquela civilização…(2009,  pág. 225)

Mas seu estado de ser e sua força não titubeiam a sua estrutura léxica: a escrita é “limpa” e seu tradutor nos ajuda. E assim, misturando depoimentos, fala de um espelho, de um molho de tomate, uma semolina, um echarpe, uma colina, ou até mesmo, nas entrelinhas um silêncio encravado, enfiado na cara de personagens como Nini, em O caminho que leva à cidade, 1998), ou entre seus personagens do Caro Michele, em que o estilo epistolar lacra um silêncio como multifacetas de um ofício de escrever. Ela costumava mastigar palavras ou frases que a chamavam atenção, para exercer com seu suco o adequado locum frasal: ”Minha veste é escura: Esta também é uma frase que repeti muito tempo para mim. Durante o dia, murmurava estas frases que agradavam tanto.”

O ofício de Natalia é a consolidação de sua vida. E dizê-la faz com que a autora emerja em novo oxigênio pois dizer sempre refresca. É isso que parece nos mostrar Natalia Ginzburg.

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Paulo Vasconcelos é mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta com vários livros publicados

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