De Kátia Bandeira de Mello Gerlach *

Um homem de barba bíblica, filamentos verde musgo, longos fios de couve. Os fios de Wassily estão presos às raízes plantadas no crânio do imbecil. Sim, todo o homem que, como ele, recusa-se a aparar a própria barba e a cabeleira, os seus cabos de ligação com as nuvens, é um perfeito imbecil. Ademais, bebe sem derramar no copo e entorna pelo esôfago quarenta por cento de álcool. Queixa-se do canto de sereia no estômago azeitado, enjoo, turbulência. As ruas são turbulentas como os oceanos, onde quase não se encontra um ombro sobre o qual apoiar o peso da cabeça e nivelar a plataforma.

O velho Wassily possui um apartamento no casarão de tijolos próximo à estação de trem e, entre as quatro paredes cremosas, guarda caixas de papelão desfeitas, pois algum dia planeja construir um navio que o carregue pelas ruas oceânicas. Afinal, cansou-se de nadar. O almirante dará o apito para zarpar viagem em sangue seco pelo hemisfério. És um louco, acende-lhe a cabeça de um fósforo o fogo da ideia. Mas o velho sabe que viaja sobre a linha branca da sanidade mental, uma linha de contrastes radiológicos, uma linha que vira de um lado para o outro a depender do peso das pernas de quem faz de si tábua da própria salvação — e, nesta ciência criativa, ele não se deixa subestimar.

Senta-se no banco da Praça do Tempo, ao sul. Admira os jogadores de xadrez, damas e gamão. Tantos os homens e mulheres jogadores que o cercam: ele não, recusa-se a mover peças de brinquedo sobre o tabuleiro de fortuna em quadrados foscos ou não. Ele foi irmão, soldado, consorte, e agora exige reconhecimento como construtor de navio de recicláveis; que me chamem de Noé, mesmo os que desacreditam na arca de papelão a enfrentar o dilúvio que se estampa na página oficial do aquecimento dos céus, do esfriamento das mãos, da tormenta das almas destemperadas. O sustento de um homem está nas águas do aquário uterino da terra, do tombo dos sentimentos pelas lágrimas, do labirinto dos pensamentos líquidos que circulam na cabeça, num cérebro em chamas.

Nem sempre as pernas do velho respondem ao pedido de dar passos em frente. Wassily estagnado sobre o ponto geográfico neurológico, algo em falso na química dos líquidos que informam o movimento. A bengala inerte devido à desobediência cerebral. Enfrentar a película da estática foi como o desvirginar da mulher por quem se apaixonara numa sombra remota do roldão de memórias. Ele chorou quando rompeu o corpo dela. Depois se viu sem tempo para as lágrimas e viveu até que Edith morresse intoxicada da mastigação de papel. Os senhores doutores médicos de plantão acreditaram-na leprosa? Por que cortaram os seios de Edith? E os seus braços e pernas? Amputaram um membro de cada vez e na pele que sobrava as nódoas dos líquidos densos e intravenosos. Reconheci no sono dela o sussurro da despedida e sou o Wassily que perdeu um filho, enviuvou e sobrevive devorando folhas umedecidas de periódicos, e saquinhos de castanhas na brasa.

No outono ou na primavera, o velho da barba bíblica de fios esverdeados como folhas de couve finas e leves alimenta-se das castanhas quentinhas que lhe vende o ambulante Juan Romero, outro homem, outra história de vida, outros desencantos; ele conta: ô, Wassily, a minha mulher se foi vivinha como truta no lago para as mãos de outro e abandonou-me com os filhos e a carrocinha de castanhas; no bilhete de despedida escrito sobre um papel rasgado de padaria: “Juan Romero, o seu olor à castanhas queimadas me é insuportável, irei viver com o pipoqueiro de uma praça mais ao norte da tua”. Quando a meteorologia anuncia intempéries, Wassily não falha em convidar o Juan Romero para que se abrigue no navio de papelão em vias de existir, mas o ancião reparou que o companheiro das castanhas não lhe dá fé e confiança e sorri com o rosto mascarado pelo vapor da panela aquecida que ele sacoleja feroz a evitar perder as alegorias que enfeitam a sua vida.

A reprodução descontrolada de minotauros na cidade precisava ser contida. O Carnaval de 2666 fora noticiado como uma catástrofe ecológica, não teria sido uma invasão circense. São três as posições de um homem perante o perigo: de pé, sentado ou deitado na horizontal.* Wassily pode estar de braços cruzados numa destas três posturas possíveis. Ou deixar que os braços caiam ao lado do corpo. Ou encontrar forças para suspender os braços perpendicularmente e reagir.

Wassily consulta-se com o médico que emite um prontuário para as aflições. O doutor Benedito destrói castelos e arcas: Wassily, o que lhe deu na cabeça para acreditar-se o segundo Noé? Nem Jesus Cristo nasce e renasce sucessivamente. A sua doença é capilar. Corte a cabeleira espessa, raspe a barba de fios de couve e irá descobrir um novo homem; e mastigue papelão ao invés de jornais noticiosos. E Wassily retruca: mas o que devo fazer se o primeiro passo anular a força de todos os outros?

Com a receita médica no bolso da camisa, Wassily sentiu um medo tremendo de executar as ordens do especialista, um ignorante em vestígios do dilúvio. Um homem de hábitos seculares não descobre o rosto como quem afasta as cortinas de uma janela ou as pernas de uma mulher. Como a bengala recusasse a ir em frente, Wassily recuou e a partir daquele ponto vislumbrou um antipoema que seria viver ao revés. Oxalá em cem anos regressivos a mãe o parisse. Mas que nada, mas quanta coisa estapafúrdia, se a vida não fazia sentido, Juan Romero, seja quantas mulheres forem desvirginadas, quantos homens queixarem-se entre lágrimas ou quantas castanhas queimarem na tua brasa, hombre de Dios!

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O conto acima integra o livro Colisões bestiais (particula)res [editora Oito e meio, 47 págs.], de Kátia Bandeira de Mello Gerlach.

Carioca radicada em Nova York, a autora é mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e integra o corpo docente da Universidade Desconocida do Brooklyn, sob reitoria de Enrique Villa-Matas.

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