O centenário de José J. Veiga

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José J. Veiga é um dos principais nomes do realismo mágico brasileiro. Para comemorar o seu centenário, a Companhia das Letras relança ao longo do ano a sua obra completa, a começar pelo seu primeiro livro, Os cavalinhos de Platiplanto, coletânea de contos que marcou a escolha da assinatura do seu nome. Foi Guimarães Rosa o responsável pela sugestão de inserir o J. (de Jacinto) entre José e Veiga.

O livro foi lançado em 1959 e ganhou o Prêmio Fábio Prado. O autor já era um homem maduro, com 44 anos, quando o escreveu.

Foi saudado pela crítica por sua prosa com reminiscências da infância. As dificuldades da vida adulta percorrem o universo narrativo do livro, como em “Entre irmãos”, selecionado entre Os cem melhores contos brasileiros do século, da editora Objetiva, em que dois rapazes confinados numa sala percebem que são irmãos e não conseguem diminuir o clima de desconforto e estranheza até o ambiente se tornar absolutamente sufocante.

Veiga nasceu numa fazenda, em Goiás, aos 20 anos, mudando-se para o Rio de Janeiro, para cursar a Faculdade Nacional de Direito. Trabalhou como representante de laboratório, depois como locutor da Rádio Guanabara. Entre 1945 e 1949, esteve em Londres na função de comentarista e tradutor de programas para o Brasil na BBC.

Ao regressar, em 1950, trabalhou como jornalista em O Globo e na Tribuna da Imprensa.  O trabalho da escrita foi consagrado e reconhecido por leitores e crítica também pela abordagem político-social contida em sua obra, isso no período da ditadura militar. São dele também De jogos e festas, A casca da serpente, O risonho cavalo do príncipe, Sombras de reis barbudos, entre outros títulos.

O goiano ainda traduziu grandes nomes da literatura mundial, como Ernest Hemingway, e seus livros foram publicados em Portugal, Espanha, México, Suécia, Inglaterra, Noruega e Dinamarca, além dos Estados Unidos, pela Knopf. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra poucos anos antes da sua morte, em 1999.

Além de Os cavalinhos de Platiplanto, a Companhia das Letras lança neste começo de ano A hora dos ruminantes, que conta a história da pequena cidade de Manarairema, que vê a sua rotina alterada por acontecimentos inexplicáveis. Primeiro uma legião de homens, de procedência desconhecida, decide acampar na cidade. Os moradores, temendo represálias e com medo dos visitantes misteriosos, passam a especular sobre a intenção do grupo.

Depois, a cidade é tomada por cães, que chegam às dúzias no vilarejo, causando uma inversão de papéis: enquanto os moradores ficam acuados em suas casas, os animais passeiam livremente pela cidade. E, por último, a chegada de centenas de bois completa o quadro alegórico do romance.

Leia a seguir, em exclusividade, o conto “Ilha dos gatos pingados”, do livro Os cavalinhos de Platiplanto.

Ilha dos gatos pingados  

de José J. Veiga

Já sei o que vou fazer. Se Cedil não voltar até o fim do ano, vou-me embora para o sítio de minha avó. Lá eu vou ter uma bezerra pra tirar cria, um cavalinho pra montar e muitas coisas pra fazer o dia inteiro. É melhor do que ficar aqui feito bobo, pensando toda a vida na ilha, nos brinquedos que a gente brincava, nas coisas que Cedil e Tenisão diziam, e até nos sustos que passávamos, como no dia que a jangada quase afundou com nós três.

Camilinho ainda anda atrás de mim; mas não sei se é in- fluência de Tenisão, eu não gosto muito de brincar com ele. Ele tem umas ideias bobas, chora por qualquer coisa, e tudo que a gente faz de meio estouvado ele acha de linguarar. Agora eu compreendo mais por que Tenisão implicava com ele: ele sempre foi chorão e enredeiro.

Toda vez que a gente queria ir em algum lugar precisava combinar  escondido, sair sem Camilinho  ver, e às vezes nem assim adiantava. Quando a gente ia longe, lá vinha Camilinho correndo atrás, chorando e pedindo pra esperar. Tenisão xingava, jogava pedra, mas ele não desistia. Era preciso parar e esperar. Aí o brinquedo perdia a maior parte da graça porque ele era pequeno e não dava conta de acompanhar, não sabia pisar em espinho sem espetar o pé, à toa à toa chorava. Era bobinho que só vendo, tinha medo de tudo. Não engolia semente de jenipapo para não virar barata na barriga, não comia rolinha assada pra não dar fome canina, não jogava pedra na casa de João Benedito porque ele furava um ovo com agulha e a gente ficava cego (eu só joguei uma vez e de longe, porque todo mundo dizia que ele era feiticeiro infalível). De entoado um de nós, ou nós três, esta- va apanhando por causa de Camilinho.

De maio a agosto, os meses sem R ninguém  podia tomar banho no rio, dava febre. A gente ia escondido, Camilinho  seguia, o tempo todo aconselhando, fazendo medo. Tenisão dava coque nele, mandava parar com a ladainha, mas era mesmo que nada: ele continuava choramingando, dizia que a gente todos ia morrer. Eu ficava com dó de ver aquele porqueirinha chorando por causa da morte inventada da gente, dizia que isso de morrer era invenção, prometia armar arapuca pra ele. Tenisão ficava enfezado, dizia que não tinha de armar arapuca nenhuma, se ele contasse em casa apanhava de corrião. Uma vez ele chorou tanto com uma guaspada de Tenisão que eu tive de prometer jogar burro com ele e deixar ele ganhar. Com isso ele calou do choro, mas não deixou de enredar. Quando chegou em casa ficou rodeando a mãe por todo canto, ela mandava ele brincar, ele arremanchava e não saía de perto. Ela perguntou o que ele queria, ele disse que era preciso fazer um chá bem forte pra Tenisão porque ele tinha nadado no rio. Dona Zipa ficou nervosa, chamou  Tenisão, fez o coitado beber o chá, mas primeiro deu uma surra nele e depois foi avisar lá em casa. A minha valença foi que eu estava na casa de vovó e lá eu não apanhava.

A ideia de brincar na ilha começou um dia que Cedil andou fugido de casa por causa do namorado da irmã. Ele sofria muito, todo rapaz que namorava Milila achava de mandar nele, ele nem podia brincar direito, vivia vigiado.

Quando Milila começou a namorar Zoaldo a vida de Cedil piorou. Zoaldo era muito bruto, só falava gritando. Nem Pedro Arcanjo, que já tinha brigado com soldado, tirava farinha com ele. Uma vez brigaram no botequim do Cândido, Pedro Arcanjo puxou a garrucha, o povo todo saiu de perto, menos Zoaldo. Pedro gritou que corresse, Zoaldo nem nada, e ainda ficou caçoando  da garrucha, dizendo  que  era arma alcaide, arma de queijeiro, que hoje em dia em cidade só se usava revólver chimite ou parabelo.

Pedro Arcanjo chorava e repetia que corresse, senão ele virava assassino. O Cândido entrou no meio, pediu a Zoaldo que saísse um pouquinho só pra não contrariar, Zoaldo disse que favor só fazia pra quem merecia, e assim mesmo quando tinha vontade. Quando  Pedro Arcanjo já tinha chorado bastante, e olhava a garrucha na mão sem saber o que fazer dela, e todo mundo em volta já ria sem medo nenhum,  Zoaldo chegou perto. Falou manso como amigo, Pedro, você já brincou bastante, agora me dá pra guardar, e sem esperar foi tomando a garrucha e tocando Pedro pra fora a empurrões, e se ele não corresse teria apanhado muito. Quando  Pedro já ia longe Zoaldo voltou pra dentro do botequim dizendo que ia fazer uma rifa da garrucha a um mil-réis o número, com o dinheiro ia comprar uma botina de cano de casimira. Pediu papel ao Cândido,  escreveu os números, muita gente foi assinando e botando pg. ali mesmo.

Nos primeiros dias do namoro Zoaldo deu uma surra em Cedil por causa de uma malcriação que ele fez pra Milila. Cedil estava brincando com outros meninos no barranco perto da casa. Milila chegou na janela e chamou. Ele disse que já ia e ficou brincando. Ela chamou de novo, ele disse pra não amolar. Zoaldo desceu a calçada da casa e veio vindo, parecia que ia embora.Mas quando  passou perto de Cedil  deu um bote e agarrou o coitado pelo cangote, levou pra dentro debaixo de tapa e lá ainda bateu com o cinturão.

Quando Cedil contou isso Tenisão escachou com ele, disse que ele era um pamonha, mais apanhasse pra deixar de ser bobo.

— Se fosse comigo — disse — eu sentava um trem na cara daquele trelente.

— Você fala assim porque tem pai que pune por você — respondeu Cedil.

— E sua mãe, por que que não pune?

Aí Cedil contou com muita tristeza que a mãe dele estava na cozinha moendo café quando  ouviu a zoeira; veio ver, ficou olhando e não fez nada, só dizia meu filho, meu filho, coitadinho de meu filho. Depois que Zoaldo bebeu o café e foi embora ela veio agradar, pôs arnica nos lanhos, fez beiju pra ele comer com leite antes de deitar, mas ele disse que de pirraça não quis. No outro dia cedo ela foi na loja e comprou um canivete Corneta pra dar de surpresa a Cedil, era o brinquedo que ele mais queria.

Cedil ficou meio envergonhado com o que Tenisão disse, mas explicou que a mãe dele era muito boa, só que era nervosa e não gostava de questão.

Depois disso Zoaldo não deixou mais Cedil ter descanso. Vivia mandando o coitado na rua fazer isso e aquilo, levar e buscar cavalo no pasto, e volta e meia enfiava o couro nele. Dizia que era para desasnar.

No dia que o cavalo fugiu, Cedil apanhou demais mesmo. Ele tinha ido cedinho no pasto e só voltou depois do almoço — e de mão abanando. Contou que o cavalo tinha se amadrinhado com a égua de um tropeiro e destampado com ela pelo morro acima, não deixava chegar perto. Zoaldo sapateou de raiva, disse que era má vontade de Cedil pra atrapalhar o ganhame que ele ia ter na viagem com o agrimensor. Tomou o cabresto da mão de Cedil e com ele mesmo foi batendo sem olhar lugar. Cedil correu pedindo o socorro da mãe, Zoaldo atrás dando cabrestada. A mãe de Cedil correu para o quarto, fechou a porta e ficou rezando tão alto que de fora se ouvia.

Quando eu vinha da escola encontrei Cedil sentado no parapeito atrás da igreja com as pernas todas lanhadas, chorando e riscando a pedra com um carvão. Não estava pintando nem escrevendo nada, era só rabisco. Perguntei por que não tinha ido à escola, respondeu que não ia mais, nunca mais, e me contou a história do cavalo. Disse que não adiantava ir à escola porque estava resolvido a fugir. Não sabia pra onde, mas ia fugir de qual- quer jeito, estava esperando um caminhão pra pular em cima. Eu disse que então ele ia passar apertado com os índios.

— Ques índios? — perguntou ele.

Eu disse que todo caminhão que passava ali ia para o norte, e que meu pai tinha falado que no norte dava muito índio feroz. Ele ficou tristinho, pensando, depois perguntou uma coisa boba, de gente que está mesmo muito desacorçoado: perguntou se afogar doía, se a gente ficava desesperado como quando  está mergulhando  em poço fundo e o fôlego acaba. Eu disse que afogar era horrível, que no sítio de minha vó morreu um menino afogado, o Zuzezinho,  ficou de olhos estufados como sapo, eu passei muitas noites sem dormir, com medo dele. Era horrível. Cedil pensou, e perguntou se se ele fosse viver no mato eu mais Tenisão ia todo dia brincar com ele depois da escola. Eu disse que a gente levava facão, cortava pau pra fazer casa, levava mantimento, fazia caçada com espingarda de cano de guarda-sol, Tenisão estava trabalhando uma, só faltava colocar o tufo quando achasse jeito de derreter chumbo sem a mãe dele ver.

— E a gente escala sentinela, inventa senha, ninguém passa sem dar a senha — disse ele animado, parece que já esquecido da surra.Eu disse que não carecia de senha nem de sentinela, isso era mais pra de noite, como no tempo dos revoltosos, e de noite eu não podia ir, e achava que Tenisão também não. Ele perguntou se minha mãe ficasse ruim pra mim e desse de me bater se eu não resolvia fugir também; eu disse que aí podia ser, mas era preciso pensar.

Nessa hora apareceu Tenisão rodando um cubertão velho, brecou o bicho com o pé bem diante de nós. Falamos com ele e ele achou que o melhor lugar era a ilha. Lá ninguém ia, o mato era fechado na beira da água, mas varando o mato o resto era limpo, dava muito cará e sangue-de-cristo. Não tinha era canoa, a que costumava ter tinham tirado, com certeza justamente pra menino não atravessar. O jeito era fazer uma jangada de toro de bananeira.

Fazer a jangada foi fácil, manejar a bicha é que deu panca. Não fizemos direito, pusemos os toros com a ponta mais grossa para um lado só, era tão fácil ver que não dava certo, mas ninguém reparou, acho que foi a pressa de botar na água. Dentro da água ela teimava em afundar na parte de trás, chegamos pra frente e ela afundou a frente pra igualar. Chegamos na ilha escandalosamente molhados da cintura para baixo.

No primeiro dia fincamos as estacas da casa, amarramos as traves e cortamos uma braçada de varas para trançar as paredes. Cedil queria fazer uma parede de qualquer jeito, com ramo de assa-peixe mesmo, só pra poder dormir a primeira  noite. Enquanto ele varria o chão da casa muito entusiasmado eu saí com Tenisão e combinamos que era preciso desistir Cedil de fugir improvisado; a gente primeiro  fazia uma  casinha caprichada, com jirau e tudo pra dormir, depois ele mudava pra ela se ainda tivesse inclinação.

Cedil tinha esquecido a contrariedade, tinha brincado e da- do risada, tinha até corrido atrás de Tenisão com uma cobra na ponta de um pau, ameaçando jogar nele; mas quando falamos que era hora de voltar, que de jeito nenhum  ele devia de ficar, ele caiu na tristeza de novo, fazia tudo com moleza, até caminhava sem vontade, como a gente faz quando tem de recitar em festa de escola.

Depois que a casa ficou pronta o nosso brinquedo era só na ilha. Eu nem  queria mais almoçar quando  voltava da escola, preparava merenda escondido, mamãe não sabia e ralhava para eu comer, meu pai era que não ligava, dizia que quando barriga está cheia goiaba tem bicho. Mamãe dizia que assim eu acabava doente, que ele devia comprar um xarope pra abrir o meu apetite; ele respondia que o xarope que eu precisava não se vende em farmácia, é comprido e cheira a couro; daí a pouco estavam discutindo, eu aproveitava e saía.

Eu gostava bem da ilha, mas acho que gostava mais era por causa de Cedil. Ele tinha deixado de falar em afogar ou fugir, decerto porque Zoaldo estava viajando, ajudando seu Zaco no serviço de guarda-fio. Diziam que Milila não ia mais ser namorada dele, não sei se era certo, mamãe zangou quando perguntei. Mas Cedil não parecia o mesmo, todo dia inventava um brinquedo novo. Fizemos monjolinho de gameleira, é fácil de torar e furar, pilava à toa o dia inteiro, quando a gente ia embora escorava ele levantado como monjolo de verdade. Fizemos usina de luz com represa, casa de turbina, poste subindo e descendo morro, copinho de isolador, fio e tudo, gastamos acho que dois carretéis de linha.

A ilha não tinha nome, era tratada só de ilha. Tenisão disse que carecia de dar um nome, mas não achamos nenhum que prestasse. Eu disse um, Tenisão disse que era bobo; Cedil disse outro, já tinha. Um dia pegamos a falar de bicho, eu disse que pra meu gosto o bichinho mais perfeito que tem é o preá, até dá vontade de criar em quintal, aquele corpinho peludo chamuscado, os olhinhos balançando de nervoso, o bigodinho tremendo quando vê gente. Eu só não pelejava pra pegar um porque tinha medo que ele morresse de susto. Tenisão disse que o bichinho mais bonito do mundo inteiro, até nacional, e o mais custoso de achar, era o gato pingado; tinha uns até pingados de ouro, e esses então nem se fala. Eu não sabia que tinha esse bicho, Cedil também não, mas mostrou logo influência. Disse que se a gente juntasse dinheiro vendendo banana  do quintal  de cada um, quem sabe se não podia comprar um casal e tirar cria na ilha? Aí ficava sendo a Ilha dos Gatos Pingados. Tenisão disse que para comprar era baixo que não achava, nem um quanto mais dois.

O nome ficava bom, mas só se tivesse os gatos. Mas, como nenhum de nós arranjou outro, ficamos com esse mesmo por enquanto.

Camilinho vivia desconfiado que a gente devia ter um lugar escondido, só nosso, e andava sempre atrás adulando, oferecendo brinquedo, me deu uma lente de óculo, tão forte que até acendia papel no sol. Às vezes me dava remorso de ver o bestinha brincando sozinho uns brinquedos sem graça de botar besouro pra carrear caixa de fósforo, fazer zorra que nunca zoava, ajuntar folha de folhinha; mas quando falei pra Tenisão que a gente devia levar Camilinho ao menos uma vez pra ver os brinquedos da ilha, Tenisão deu na mala, disse que nem  por um óculo, que ele era muito chorão, parecia moenda.

Acho que um dia Camilinho pombeou nós três e viu quando tiramos a jangada da moita e atravessamos para a ilha. Quando foi de noite na porta da igreja ele me perguntou onde a gente tinha ido na jangada, e outro dia na escola um tal Estogildo, menino  muito entojado que vivia passando rasteira nos outros, disse que ele também ia fazer uma jangada pra passear longe no rio. Depois eu vi  Camilinho muito entretido com uma garrucha de taquara, dessas que jogam bucha de papel, uma mesma que eu tinha visto na mão de Estogildo. Eu não contei pra Tenisão pra ele não bater em Camilinho, porque de nós três ele era o que mais não gostava de Estogildo; mas aí eu principiei a desconfiar que o brinquedo da ilha ia acabar acabando.

E nem demorou muito, parece até que eles estavam só esperando uma vaza. Passamos uns dias sem ir lá porque Tenisão andou de dedo inchado  com panariz, doía muito, foi preciso lancetar, e brinquedo sem ele desanimava. Nesses dias a gente ia pra beira do rio e ficava olhando a ilha. De longe ela parecia mais bonita, mais importante. Quando vimos o fumaceiro, corremos lá eu e Cedil, Tenisão ainda não podia.

Estava tudo espandongado, a casa, a usina, os postes arrancados, o monjolinho  revirado. Cedil chorava de soluço, corria pra cima e pra baixo mostrando os estragos, clamando da ruindade. Eu quase chorei também só de ver a tristeza dele. Para nós a ilha era brinquedo, pra ele era consolo.

Tenisão parece que não ligou muito, disse que ia arranjar outro lugar melhor e mais escondido, mas nunca tinha animação pra procurar; quando Cedil perguntava, ou eu, ele dizia que tinha tempo. Assim foi indo até que d. Zipa mandou Tenisão para o colégio dos padres em Bonfim. Mais ou menos nesse tempo Zoaldo voltou de viagem e pegou de novo em namoro com Milila, batia mais ainda em Cedil, acho que pra descontar o tempo que não bateu. Nós todos lá de casa fomos para o sítio de vovó esperar a folia. Eu quis levar Cedil, mas Zoaldo disse que podíamos tirar o cavalo da chuva.

Quando  voltamos, acho que um mês depois, todo mundo falava em Cedil — tinha fugido de madrugada ninguém  sabia pra onde. Deixou o canivete Corneta pra mim, sabia que eu ia gostar de possuir. Sei que ele quis me agradar, mas foi pior, por- que eu passava o dia inteiro pensando nele. Mamãe ralhava, dizia que era melhor eu ir tratando de esquecer. Ouvindo todo dia sempre a mesma coisa eu ficava mais triste ainda. Qual era a vantagem de esquecer? Pois eu até tinha medo de acordar um dia e descobrir que tinha esquecido Cedil completamente, ele tão menino e já sofrendo longe no mundo. Acho que tem certas coisas que a gente não deve esquecer, é como uma obrigação. Se depender de mim, nunca eu hei de esquecer a Ilha dos Gatos Pingados.

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Os Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga (Companhia das Letras, 153 págs.)

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