* Por Raimundo Neto *

 Um romance é uma segunda vida, é o que escreveu Orham Pamuk[1], ao explanar sobre a aparência que um romance pode ter, ao ser mais real, muitas vezes, que a própria realidade e o efeito que isso causa nos leitores. Nesse caminho, Nicole Krauss, em entrevista para o Louisiana Chanel, explana um pouco sobre sua ideia de escrita como uma criação do Eu e de outra vida; uma reflexão de que todas as pessoas não-escritore(a)s também escrevem uma ficção do próprio Eu, na medida em que todos precisam constantemente ter algo a dizer sobre o que são.

Para a escritora, quando alguém escreve um romance descobre coisas sobre si mesmo que eram desconhecidas. É sobre alguns desses conteúdos que não são conhecidos, ou acessíveis imediatamente pela consciência, que tratam os livros de Nicole Krauss. Desde o romance de estreia Um homem entra na sala ao penúltimo romance da autora, Memória de nossas memórias, há a temática da solidão e do desconhecido rondando as possíveis escolhas das personagens; para além disso, os romances escritos por Nicole Krauss abordam ainda as muitas maneiras pelas quais somos afetados por perdas catastróficas e as respostas que damos (e que os personagens dão) diante delas, e que, em cada livro de Nicole, as personagens de modo muito singular se recriam a partir disso, traçando outras narrativas para si, através não apenas da memória mas também da imaginação.

No novo romance de Nicole Krauss, Floresta Escura (2018, Companhia das Letras), duas são as personagens principais: um advogado milionário, quase septuagenário, Jules Epstein, e uma romancista famosa e reconhecida, Nicole. O livro inicia-se com o desaparecimento de Epstein. Um milionário que resolveu morar numa espelunca em Tel Aviv, no deserto, depois de, aos poucos, desnudar-se de sua riqueza entre aqueles mais próximos, algo incompreensível para quem conviveu com a personalidade um tanto cética de Epstein, um tipo de homem que “transborda de si”, caminhando entre extremos, com “hábitos inflacionários”, polido, rico, sem refinamentos, mas que começou a sentir pequenos desconfortos íntimos: “algo se abriu entre Epstein e seu enorme apetite”. A personagem Nicole questiona-se sobre o papel de mãe e esposa, e ao questionar sobre si, ao viver esse papel, questiona também sobre a escrita e as formas que possuem um romance. Nicole questiona sobre outras formas possíveis de ser a mulher que a ensinaram, e assim questiona outras formas possíveis para o romance a ser escrito. Nicole, então, guiada por outro personagem, um professor de literatura que também estuda Kafka (e conta que há textos nunca publicados por Kafka guardados em Tel Aviv), busca alguns sinais e símbolos que possam funcionar (não de um ponto de vista meramente utilitarista) como “portais” e caminhos para uma transformação.

I – O caos di(st)ante da forma

A narrativa de Nicole Krauss, em Floresta escura, apresenta, assim, ao longo das duas partes que compõem o romance, grandes e pequenos acontecimentos que possivelmente tenham marcado os personagens Epstein e Nicole.

Krauss, no romance, não apresenta fatos que geram consequências diretas e óbvias, o que poderia sugerir ao leitor uma ideia de que grandes dramas obviamente transformam personagens sensíveis. Há um tipo cauteloso de registro na narrativa de Nicole Krauss ao apresentar minúcias cotidianas, que podem ou não provocar mudanças nas personagens escritas por ela. Assim, os personagens Epstein e Nicole vivem o que poderíamos definir como conflitos: casamentos rompidos definhando nas águas intranquilas da indiferença; a maternidade e a paternidade esperada para uma mulher e um homem, construídos com e pelas exigências das comunidades judaícas de Nova York com raízes em Tel Aviv; o sucesso como um esforço para nunca ser deixado de lado ou sozinho; ambos agarrados a certezas mais que concretas, também bem sucedidas, coroadas com algum tipo de conhecimento e ceticismo que possibilita refletir sobre aquilo que constroem em suas obras e suas vidas (seja escrevendo romances de sucesso, seja acumulando riquezas e conquistas). Embora Epstein e Nicole sejam apresentados como personagens que se permitem reflexões a partir de observações de outras pessoas, relações e demais coisas que os cercam, é apenas quando aceitam o caos do inesperado que é a vida que a mudança gira suas engrenagens, primeiro na consciência e depois em seus atos meditativos e analíticos sobre o que não são mais e o que pretendem de si.

Nicole e Epstein não se cruzam ao longo da narrativa. Em algum momento, em narrativas que correm separadas (Epstein contado em terceira pessoa e Nicole narrando em primeira pessoa), ambos os personagens hospedam-se em Tel Aviv, no hotel Hilton, e depois decidem viajar e seguir para mais longe, para o deserto. Em comum, há o espaço que ocupam, familiarmente desconhecido, a estranheza que a familiaridade também ocupa na vida após o correr de anos ao lado de outras pessoas, relações e perdas que os transformaram. Mas algo começa a se mover em Epstein e Nicole. Nicole Krauss não apresenta uma marcação clara de onde isso se inicia, e escreve com uma linguagem que vai assumindo as discretas mudanças das personagens, para desconstruir clichês, talvez.

A personagem Nicole reflete sobre a maternidade e a personalidade apavorada dos filhos, a indiferença sensível de seu marido, o imbróglio criativo que vive diante da escrita de seu novo romance e de como o que afeta a sua escrita é aquilo que experimenta na vida. A personagem reflete também sobre o incômodo diante das propostas teóricas da separação entre corpo-mente, com os conceitos de Descartes. As ideias que a personagem apresenta em sua narrativa sugerem que há uma potência transformadora da escrita e da literatura que muito provavelmente não dará conta do inalcançável mistério que é viver, nem diante da busca incansável por uma coerência entre corpo-mente. É diante dessas explanações que Nicole diz que leva consigo a sensação de viver em outro espaço, além daquele que ocupa com seus filhos e marido; seu corpo ocupando uma narrativa enquanto sua mente prepara-se para algo além disso. É assim, nessa escrita que sugere ambiguidades e complexidades sobre viver e reconstruir narrativas sobre si, que Nicole Krauss escreve uma história que deixa circular ventos de algum tipo de existencialismo arejando o que há de técnica, sem a petulância de intelectualismos didáticos e saberes que explicam a existência de homens e mulheres e o interior muitas vezes sufocante de personagens.

II – O desconhecido potente

“Floresta Escura” é, de muitos modos, um reflexão sobre aspectos da realidade que nos são dados e apenas aceitamos; e para além disso, aceitamos, incorporamos, nomeamos as transformações do que somos, assumindo papéis que nos são dados, e não questionamos, de forma que, diante de qualquer movimento interno, qualquer agitação de uma pergunta simples ou banalidade ocasional, uma reflexão sobre o que não nos cabe mais neste mundo, parece-nos um passo, mesmo tímido, incômodo para uma mudança. Nomeamos de real o que somos e o que temos, o que acumulamos para nós, inclusive os papéis que desempenhamos; no entanto, cabemos nisso pelo resto da vida? É esse o “desconhecido potente” que se enraiza no romance de Nicole Krauss: uma sensação de que os personagens começaram a viver em espaços muito estreitos de suas vidas, nos papéis que lhes foram dados.

De muitas maneiras, inicialmente as personagens principais de “Floresta escura” buscam uma ordem e muitas certezas. É o que precisam. Nicole Krauss consegue ordenar esse caos na narrativa de modo a expor aos poucos uma busca dos personagens diante dos desconfortos advindos das frustrações.

O romance é elaborado de forma a refletir sobre narrativas e desordens da vida como contextos inescapáveis. Os personagens Epstein e Nicole estão caminhando para uma experiência diante do desconhecido, partindo de desconfortos muito íntimos, de angústias e incômodos que começaram em rompimentos significativos e se estenderam a eventos comuns. Ao ler o romance, alguns pensamentos lampejam a respeito do mundo que nos cerca e consome. É possível pensar sobre o conforto que há em viver nesse mundo e que mantemos ao sustentar sem relutar muitas vezes certezas sobre tudo. Falamos de estabilidade (afetiva e financeira, por exemplo) como uma garantia de realização e sucesso; e a isso nos apegamos. O que sentimos e pensamos (todas as crenças pessoais e sociais, familiares e religiosas) é construído de modo a efetivar apegos ao que temos certeza que somos. Precisamos sustentar tais coerências diariamente. Para isso, temos fatos, informações, dados disponíveis e espalhados por aí: nas redes sociais, nas casas onde nascemos, nas famílias que somos, nos amores pelos quais nos apaixonamos e também desistimos. O que somos é o que nos ensinaram, entretanto, a verdade é que temos conhecimento acumulado e, portanto, resposta para tudo. E parece que estamos sempre certos disso.

O que Nicole Krauss aprofunda em seu romance é uma busca pela forma não apenas do romance e da escrita, mas também de uma verdade subjacente que não é tão simples de ser explicada. A escritora chegou a refletir, em uma de suas entrevistas, que entende que há milhares de anos havia espaço para o desconhecido incognoscível na humanidade; não um incognoscível ignorante, e, sim, algo para o qual olhamos e pensamos “Há tanta coisa que não entendemos sobre a vida e ainda assim pode nos encher de admiração e maravilha”. É sobre isso o romance de Nicole, sobre as possibilidades (diárias até) de nos afastarmos do conforto e da estabilidade esperada no mundo conhecido e racional, em direção ao desconforto que pode promover mudanças.

A consciência de um mistério indissolúvel, não solucionado, as reflexões que consomem e não respondem completamente, tudo isso é narrado no livro de modo a conduzir o leitor por uma floresta densa, onde importa absorver o caos que se espalha, o indizível dos sentimentos, as incertezas que não cansam de chegar. As narrativas construídas para Epstein e Nicole sugerem que o livro trata também de certezas que não existem, a não ser na interpretação que construímos, a partir de nossas heranças e dos papéis que assumimos: é sobre a mortalidade do amor, a materialidade das constâncias, o utilitarismo dos valores e montantes que parecem garantir bem-estar e o futuro.

Se o romancista, para Orhan Pamuk, é alguém que ao encontrar material nos detalhes de sua própria vida e em sua imaginação, “escreve para explorar, desenvolver e entender profundamente esse material”, é possível apontar, com essa reflexão, que Nicole Krauss tenta em sua narrativa aprofundar alguns sentidos a respeito da vida e do mundo. É refletindo e pensando sobre a escrita e processos criativos que ela consegue ampliar essa perspectiva.

Nicole Krauss disse, certa vez, em entrevista, que quando alguém escreve, permite-se expandir um olhar para si, ciente de que não se tornará a personagem escrita; expande-se um pouco o senso de si e esse ato de empatia carrega emoções. Para Nicole, a escritora, fazemos isso na literatura, mas também quando nos voltamos para fora da literatura, para fora do livro, podemos compreender que vivíamos numa ideia estreita de como é possível mudar a narrativa de quem nós somos. A estreiteza que Nicole Krauss menciona diz respeito ao desconforto que muitas vezes sentimos quando todos à nossa volta dizem que estamos ali para sermos apenas filhos e filhas, maridos e esposas, pais e mães, escritores e advogados, e o nosso autoconceito construído e arraigado acena e concorda que estamos ali para nos adequarmos, porque, segundo Nicole, precisamos dessa coerência. Segundo Nicole, acontece, em algum momento, que essa história fica apertada, onde nos encontramos presos e sufocados. A escrita, para Nicole Krauss, apresenta assim uma reflexão de como, de muitas maneiras, o nosso “self/eu”, e a nossa identidade, é uma “narrativa maleável”.

No romance, Krauss não escreve para jogar luz, através de mecanismo literários batidos, dentro da floresta escura (o desconhecido que existe e talvez não consigamos nomear sempre, ou pelo menos a razão tenta dar nome e fazer caber explicações); sua escrita constrói a narrativa de Nicole, a personagem, por exemplo, como uma meditação analítica das minúcias e incômodos diários – da mulher que escreve e é mãe, do casamento vivido com um homem que se distancia todos os dias, das representações de uma casa como um lugar familiar que só quando retornamos a ela, depois de partirmos, torna-se lar, sobre habitar lugares físicos distantes do corpo, como se tê-los ocupando a consciência fosse neles viver ou estar. Nicole, a personagem, busca assim os fios da narrativa de seu romance. Começa de um lugar físico, o hotel Hilton, em Tel Aviv, experiência de sua infância também; é na memória dessa infância, na saturação de não-ditos presentes no casamento, e no inesperado de um acontecimento sem explicação – uma coincidência-engano – que a personagem inicia as reflexões e as anotações do livro a ser escrito.

Nicole, a personagem, escreve-se para contar o que ainda não sabe. E Nicole, a romancista, escreve-se para contar sobre mundos coexistentes, livros e pessoas que acontecem também em casualidades, a partir do caos que é a vida, mas que na composição da narrativa deve ser afastado. É nessa narrativa que Nicole Krauss escreve sobre atar-se em nós e cordas do passado, “sonhando em nos libertar, em sair desse mundo e entrar em outro onde não somos atrofiados e deformados para encaixar no passado mas podemos crescer livremente, rumo ao futuro”. (pág. 84)

As personagens Nicole e Epstein, ao avançarem para o deserto, depois de deixarem o hotel Hilton, parecem seguir não a direção das certezas ou conhecimentos empiricamente elaborados, refinados espinozamente, para garantir evidências e explicações de como o mundo é; o que se inicia com eles é um movimento de transcendência, ambos “conduzindo suas energias por uma nova vastidão”. (pág 105). É assim que a romancista parece permitir que seus personagens descubram-se a cada novo insight, que só é compreendido como algo a ser elaborado no caminho e manifesto à medida que o romance avança.

III – Florestas que se abrem em florestas, o inescapável

Muitos questionamentos vão vasculhando Epstein e Nicole, antes e durante a travessia que os leva ao deserto, em Tel Aviv; estão sempre a ponto de tornarem-se conscientes de tudo que quase deixaram de ser. Em alguns momentos da leitura parece que os personagens não sabem exatamente para onde ir, no entanto, a lucidez da escrita de Nicole Krauss, não apenas livra o romance do caos, e um pouco de alguns clichês, como garante que o livro siga os rumos de uma transformação.

Epstein, numa conversa com um rabino, ouve explanações sobre a criação do mundo e as escritas dos povos judeus, a constituição das narrativas sagradas sobre o nada criado como possibilidade para o infinito, não apenas como uma ausência apocalíptica anunciada. Nicole, guiada por um professor de literatura, ao fazer reflexões sobre a obra e a vida de Kafka, começa a entender que “seguia em outra direção. Nadando contra a impetuosa corrente da compreensão, para o outro lado. (…) Eu não queria ver as coisas como elas eram. Estava cansada disso”. Pág. 101

Epstein busca a concretude de sua transformação, ao doar bens, e ao contratar a possibilidade de plantar uma floresta com quatrocentas mil mudas de árvores no deserto. Isso também é transformar, enquanto Nicole busca um sentido para a escrita de si. Reescrever é assumir, portanto, outra narrativa para além do que lhe foi entregue pelos pais, pelo amor dos filhos e marido, pela expectativa de suas leitoras e leitores. Então, guiada pelo professor Friedman, até certo ponto, Nicole conjectura, a partir de suas leituras de Kafka (e sua admiração pela história do autor), sobre seu lugar na literatura, seu lugar ocupado em Tel Aviv, e o deserto que se inicia. Olhar para o mistério não decifrado diante de Kafka e seus textos escondidos (no romance, centenas de papéis escritos por Kafka foram parar em Tel Aviv, estando na posse de Eva Hoffe, filha de Esther Hoffe, amante de Brod, amigo a quem Kafka teria confiado seus inéditos) é olhar não apenas para a crise silenciosa que se desenha na personagem, é também escrever outra possibilidade de começar um caminho.

Nas explanações dos personagens Epstein e Nicole, mesmo que nunca se encontrem, meditam sobre as narrativas sagrados escritas na bíblia e as narrativas presentes nos romances e cartas de Kafka apontando para uma “dimensão da existência” e uma “resistência quase tântrica da frustração” (pág 142), como potencialidades capazes de treinar a alma do leitor “para o absurdo” (pág. 142). No entanto, a voz narrativa em primeira pessoa sugere que a composição do divino bíblico não é suficiente para a transformação de Epstein; assim como, segundo a narrativa em primeira pessoa da personagem Nicole, analisa as reflexões de Kafka de que o papel dos sábios é chamar nossa atenção para o “fabuloso além”, mas que “não podem nos levar lá” (pág 142). Como se os caminhos de Epstein e Nicole, por mais guiados que estivessem no início por rabinos e professores de literatura, agarrados a certezas divinas e ficções kafkianas, estivessem à mercê do desconhecido.

Caminho desconhecido que se faz como mistério: como estar em dois lugares ao mesmo tempo? Como é possível escrever assumindo o ponto de vista de uma Nicole, que é personagem, e narrar uma busca pela desconstrução de um bloqueio criativo, e ainda assim produzir questionamentos sobre seu lugar na família e na literatura, do outro lado do livro, ocupando o lugar de quem se narra inventando? Como escrever dois mundos e ocupar um breve lugar familiar e ainda assim diferente?

Por esse caminho, um dos muitos que se abrem nas narrativas, aos poucos o romance aprofunda-se, com uma sensação, vez ou outra, de “agora o livro se tornou mais complexo”, isso à medida que os personagens também aprofundam e erguem reflexões e meditações mais consistentes e conscientes sobre si. Nicole, a personagem, tenta encontrar uma forma para o romance, numa vida, a sua, que é baseada na ordem, através de planejamentos exatos guardando em si “uma espécie de medo” (pág 175). Escrever sobre outras vidas obscurece, para Nicole, “o fato de que os planos que a pessoa fez para si a isolaram do desconhecido ao invés de aproximá-la”. Ela busca a forma do livro, porque buscou para si a forma e a constância da vida, organizando-se, disciplinando-se, “como se tudo dependesse disso” (pág. 176). E Nicole, cada vez mais próxima do deserto, longe da família, da segurança do Hilton, depois do primeiro contato com uma mala possivelmente preenchida com os textos inéditos de Kafka e sua existência potente, entende como as mudanças chegam e se instalam: “eu operava em um mundo de leis familiares e circunstâncias incomuns, mas, depois dela (da mala), as leis familiares começaram a tremer e a se curvar um pouco”. (Pág. 182)

Nicole procura o fim do livro, não apenas os rabiscos que podem iniciá-lo. O hotel Hilton confunde-se como partida e chegada. É estranho não apenas para a personagem identificar, apenas com a consciência e alguns insights, o começo e o fim das próprias narrativas. Memória, passado-presente, desejos e expectativas, frustrações e esperas distorcem-se em abraços intermináveis em tudo que ela é e mais ainda no que não sabe sobre seu futuro. A personagem medita sobre si, sobre o que aprendeu, consciente e inconscientemente, o que construiu, as interpretações e significados sobre a vida e o mundo, e sobre o caos e as incertezas circulantes ao redor: tudo é passível de reinvenção em sua narrativa. Nós também, leitores, escrevemos automáticos o que somos e sabemos para tornar menos desconfortável o próximo passo, e o próximo passado que não cansará de ser futuro, se não questionarmos as formas que o mundo nos deu. O que Nicole Krauss escreve em “Floresta escura”, através das narrativas de Epstein e Nicole, e ainda a cachorra que acompanha Nicole no deserto, a presença sentida de Kafka, e um deus que é pura ficção, é uma narrativa sobre como aceitar o caos que não cabe em um livro, apenas na vida real e nas ficções que somos:

“A narrativa pode até não ser capaz de sustentar a ausência de forma, mas a vida também não tem grandes chances. (…) Porque a natureza cria a forma, mas também a destrói, e é o equilíbrio entre os dois que enche a natureza de uma tal paz. Mas se a força da mente humana é sua capacidade de criar forma a partir do que não tem forma, e atribuir significado ao mundo pelas estruturas da linguagrm, sua fraqueza está em sua relutância ou recusa em demoli-la. Estamos apegados à forma e tememos o que não tem forma: somos ensinados a teme-lo desde o princípio.” Pág. 146

IV – O limiar do entendimento final:

Nicole vive duas vidas, duas narrativas, e à medida que assume apenas uma das narrativas, “a outra vida sem forma e sem nome” vai se apagando, se tornando inacessível, até fechar-se, como se assumisse como real apenas uma das narrativas do que ela é, nos caminhos decididos por ela e também para onde o caos da vida a empurra. É como o livro que decidiu escrever, e o outro que começa a não existir paralelo a partir de tudo o que aquele outro livro não é; o livro que não escrevemos paralelamente em inexistência ao livro que tentamos escrever com todas as formas que nos foram dadas pelo mundo; o vazio ocupado de infinito, a ausência preenchida de possibilidade.

Mas em que momento a outra vida, a que corre paralela a essa que escolhemos repetir todos os dias, talvez inversa às repetições que exercitamos para que nada escape do controle, pode começar? Quando a mudança, seja ela levemente perceptível ou dinâmica e desajeitada, começa de fato? Quando o casamento termina? Quando Nicole decide ir a Tel Aviv, e é levada por Friedman e suas reflexões sobre Kafka ao desconhecido que habita o deserto? É quando Nicole escolhe a incerteza de tudo que segue e decide seguir, deixando momentaneamente os filhos e o marido para buscar a narrativa do romance que lhe escapa? A mudança começa quando abandonamos as formas dadas e estreitas sobre o Eu que nos entregaram desde o nascimento?

Sair da ordem do tempo, como pensa Nicole, na narrativa escrita por Nicole Krauss, é romper com a constância de um presente ferido pelo seu passado – individual, coletivo e ancestral – que não para de acontecer. O tempo do qual escapa Nicole é um tempo que gesticula no corpo movimentos discretos da vida: um acontecimento significativo, para Nicole ou Epstein, configura-se supremo e metamorfoseante, momento em torno do qual a vida “até então havia secretamente girado”. (pág. 263)

É aos poucos que os personagens (e nós) vão adquirindo consciência de que a sua atenção se aguça; uma clareza para observar os detalhes do agora e realizar avaliações internas, até a conclusão sobre as aparências das coisas e pessoas, e de como tudo o que se pensa até aquele momento da descoberta pode ser apenas uma emulação do que pensam as demais pessoas, como se os personagens descobrissem que estão pensando e olhando para tudo apenas da maneira como os outros olham, dizem e fazem, moldando suas vidas a partir da deles.

Tornar-se consciente disso produz dor na personagem Nicole, num processo que ela nomeia de “esfolamento do eu” (pág 269). Como a personagem Nicole, no deserto, quantos de nós já vivemos esse “esfolamento”, em momentos de crise e conflitos, ou em outros momentos mais discretos, em que somos sacodidos pela realidade incômoda? Quantas vezes já não sentimos e percebemos essas dilacerações da mente?

A resposta não está dada no romance de Nicole Krauss. Pois a resposta não cabe num punhado de palavras e números.

Qualquer resposta será um caminho dentro da floresta escura de “uma transformação em andamento”, para que busquemos a saída da ordem antiga das coisas e enxerguemos, como Kafka, Nicole e Epstein, a plenitude que existe além da superfície de tudo, infinitos e esperançosos.

[1] O romancista ingênuo e o sentimental, Companhia das Letras

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Floresta escura, de Nicole Krauss (Companhia das Letras, 297 págs).

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

 

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