* Por Alexandre Staut *

Amália Rodrigues (1920-1999) foi fadista, cantora e atriz. Figura incontornável do Fado, aclamada como a voz de Portugal e uma das mais brilhantes cantoras do século XX, também escrevia versos.  Nem todo mundo sabe disso. Ela própria resistia em mostrar os poemas, pois, conforme consta na sua biografia, não se vangloriava da sua escrita. Letras da canção “Estranha forma da vida”, já gravada por Caetano Veloso, “Lágrima”e “Grito” são de autoria da artista. Incitada pelo seu biógrafo e amigo Vítor Pavão dos Santos, Amália publicou no fim dos anos 90 um livro com parte da sua produção poética, volume agora republicado pela editora portuguesa Cotovia. Leia alguns poemas abaixo.

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O FADO CHORA-SE BEM

Moram numa rua escura

A tristeza e a amargura

A angústia e a solidão

No mesmo quarto fechado

Também lá mora o meu fado

E mora meu coração

 

Tantos passos temos dado

Nós as três de braço dado

Eu a tristeza e a amargura

À noite um fado chorado

Sai deste quarto fechado

E enche esta rua tão escura

 

Somos vizinhos do tédio

Senhor que não tem remédio

Na persistência que tem

Vem p’ró meu quarto fechado

Senta-se ali a meu lado

Não deixa entrar mais ninguém

Nesta risonha morada

Não há lugar p’ra mais nada

Não cabe lá mais ninguém

Só lá cabe mais um fado

Que neste quarto fechado

O fado chora-se bem

 

TENHO UMA CABRA CABRITA

A rola põe-se na rua

O botão põe-se na casa

Vem o sol e vai a lua

E a formiga perde a asa

 

Perco eu a inspiração

Tudo o que faço não rima

Já perdi o que foi para baixo

E vou perder

O que vem para cima

 

Tenho uma cabra cabrita

Que lindos saltos me dá
É uma cabra tão bonita
Que é cabra mas não é má

 

Tenho uma abelha rainha

Que da minha aldeia trouxe

Linda toda amarelinha

Da cor do seu mel tão doce

 

Tenho um grilo na gaiola

Um galo na capoeira

Tenho na porta uma argola

E vivo desta maneira

 

Tenho um noivo militar

Que já me deu um anel

Só espero p’ra me casar

Que ele saia do quartel

 

A casca da fava não é

Igual à da ervilha

E também o garrafão

É diferente da bilha

 

Vinho leva o garrafão

Cheia de água vai a bilha

Já tenho a fava na mão

Já só me falta a ervilha

 

SE É VIDA NÃO ME PARECE

Tinha duas mãos abertas

E o sentimento do mundo

Tenho agora as mãos desertas

E um desgosto profundo

 

Se é vida não me parece

A este acontecimento

Que tão pouco me apetece

Chamo eu aborrecimento

 

P’rá vida ser tão cantada

Tem de ser melhor por certo

Não é decerto a maçada

Que eu tenho neste deserto

 

É morte o que me acontece

E morta ainda me espanto

Da vida que não merece

Nem mesmo este desencanto

 

Que vontade de chorar

Ai pranto de sete rios

Que ânsia de descansar

Amortalhada de estios

 

O BICHO DE CONTA

O bicho de conta

Todo se fechou

Na minha mão tonta

Quando o apanhou

E nela ficou

Todo enroladinho

Fez-me comichão

O raio do bichinho

 

Encontrei o mocho

Agarrei o gato

O mocho era coxo

Era gago o gaio

Mas fugiu-me o coxo

E falou-me o gaio

Ora vai do vira

À noite é que eu saio

Fui atrás da lua

Encontrei o sol

E vi os pauzinhos

A um caracol

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O livro pode ser comprado pelo site www.livroscotovia.pt

frente_capa_Versos de Amalia

 

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