* Por Ronaldo Cagiano * 

A verdade acerca do mundo é que tudo é possível.

 Cormac McCarthy – “Meridiano de sangue”

Nas oito histórias que enfeixam À flor da pele, Krishnamurti Góes dos Anjos percorre distintos territórios ― do histórico ao psicológico, do político ao afetivo, do geográfico ao ético ― para falar de passivos que dizem respeito à relação do ser com seu mundo, seu tempo, suas dores e delícias. Um caleidoscópio de situações, dramas, dilemas e enfrentamentos pessoais e coletivos que nunca saem da ordem do dia porque inerentes à condição humana desde seus primórdios.

O conto que abre o livro flerta com nossas contingências históricas, relaciona-se com os confrontos e diatribes que estão no cerne de nossa própria identidade ou na genética da construção de nossos valores como Estado, nação e território. No Recife de 1817, o autor mergulha nas mazelas do poder político para dissecar as idiossincrasias de um sistema viciado desde as origens, quando está em jogo a luta por uma utópica independência pernambucana. Ali vamos encontrar o gérmen ancestral do engodo e dos condicionamentos que, sub-repticiamente, vão compor o cenário de profundas distorções na formação da cultura política de um povo e nos arranjos de bastidores que acabam por interferir na soberania e no próprio legado da administração, quando os interesses subalternos elidem a democracia, a autonomia, a liberdade e o ritmo econômico e de decisões, pois a revolução pretendida nunca é a evolução esperada, tudo sobrenada nas ondas suspeitas das negociatas. Nada difere das práticas e dos remates contemporâneos, em que os esquemas vigentes se valem de outras “sutilezas” para impor o guante da opressão do mais forte.

Em O corpo de Cristo desnuda-se a hipocrisia e o pseudomoralismo na pele de uma personagem que reaviva seus passos, num périplo de consciência entre o profano e o sagrado, dissecando os dilemas da trajetória pessoal permeada de contágios e que se quer ressignificada por uma religiosidade a fórceps. Nesse jogo entre luz e trevas o que aclara são as dicotomias do próprio ser no embate íntimo com seus fantasmas e obsessões que, por meio de uma fé autopunitiva, tenta exorcizar suas contradições e negar seus impulsos, mas que, ao fim e ao cabo, é a revelação da impotência diante das forças avassaladoras da própria natureza. Algo tão comum a esses nossos dias repletos de hipnose e anestesias evangélicas, que camuflam assédios e outras emulações do instinto, eis um registro cabal e desmobilizador do falso puritanismo que assola fiéis e depõe contra a falsa pregação dos maniqueístas de plantão.

De Dois velhos… ou quase velhos permeia-se o mundo das relações nesse tempo de superficialidades, interesses e encontros fortuitos, quando o tempo cronológico e o tempo afetivo se antagonizam e acabam por deflagrar o sentimento do descarte físico, do desastre emocional, da insularidade e do desconforto diante da iminente corrosão. Aqui, o desejo se resume a uma expressão incompatível, na qual o indivíduo é vencido pela tirania do tempo e do desmoronamento da carne; ainda que o espírito vivifique a necessidade de se pleitear o amor, o desconsolo do conflito etário acaba por empanar os sonhos, e aquele homem ali, rejeitado, sentindo-se “sozinho com aquele chumbo” no coração, busca “a lanterna dos afogados” para salvar-se do naufrágio de tão dura mágoa causando-lhe fratura em seus brios.

O casamento é o retrato das conveniências desse universo socialmente burguês em que deambula o homem, o tempo das aparências e o séquito das oportunidades. Onde a realidade e a fantasia, em lúdico consórcio, redundam no fermento de algo insondável no espírito fashion de cúmplices e testemunhas do inusitado. Noutro diapasão, em À flor da pele, que dá título ao livro, uma neta defronta-se com a dor de uma avó padecendo na UTI ao mesmo tempo que se depara com um universo paralelo e assintomático, diante do indizível oferecido pelo mundo virtual, ao vislumbrar num canal de YouTube um extraordinário campo de dados e informações científicas. Tal situação provoca-lhe “um vazio estranho por dentro, de enlouquecer”, enquanto a vida que se exauria no leito de hospital lhe alardeava profundo questionamento sobre nossa mísera condição existencial e a transitoriedade das coisas. Eis um texto escrutinador, que especula sobre destinos, sobre nossa impotência e a exiguidade de soluções, imersos, inertes e inermes nessa galáxia inexaurível, na qual “a vida por vezes mete num mesmo recipiente fluidos diferentes”, coloca-nos cara a cara com o escalonamento de valores, nessa época de tanta coisificação e etiquetas, em que o império do “ter” sobrepõe-se à necessidade do “ser”.

Para Krishnamurti, habilidoso no mapeamento de nossos percursos e percalços, nada escapa ao seu percuciente olhar. Sua narrativa poderosa e cirúrgica faz incisões nos diversos contextos que modulam o tecido de nossa existência. Vamos encontrar em seus contos recortes de uma realidade violenta gerada no coração do que é real e indefectível ou nos abismos entre as classes, como em Efeito borboleta; de situações que emergem de um mundo apequenado pelas tragédias, aviltado pelas guerras, subalternizado por certa e acachapante (des)ordem mundial, pelos fracassos políticos, pelas crises mundiais avassaladoras. Diante da escandalosa e criminosa inércia dos governos e regimes, ou da incúria e do caos no atendimento na saúde pública, o autor vai deslindando o inferno nosso de cada dia, como se colhe em Enfermaria do Hospital Geral. Ou na denúncia da indolência, da inércia e da incapacidade diplomáticas que não conseguem deter o avanço dos apartheids políticos, econômicos, raciais, religiosos etc., desaguando numa era de assunção do fascismo, da barbárie, dos preconceitos, do fundamentalismo religioso e do conservadorismo medievalizante. Dessas instâncias explodem perseguições, cismas e diásporas, culminando no total vilipêndio da humanidade, impondo seus novos holocaustos, a exemplo do drama dos imigrantes e refugiados, da violência de gênero e de outros abusos, situações explicitadas com inegável precisão e contundência no pungente relato de Samírah e a noite dos longos punhais.

Em seu livro A ridícula ideia de não voltar a ver-te, Rosa Montero assevera: “Creio que é evidente que não há boa ficção que não aspire à universalidade, a tentar entender o que é ser humano”. Nessa linha se insere a escritura visceral de Krishnamurti Góes dos Anjos, escritor e crítico, com variada incursão pelos jornais, revistas e plataformas literárias, nos quais vem desenvolvendo acurado e perplexo espírito reflexivo não apenas sobre literatura, mas sobre esse mundo de horror e distopias, espelhado nas obras sob seu lúcido e agudo crivo. Estamos diante de um autor sintonizado com temáticas e emergências que nos afetam (e afrontam), com os fossos que atormentam e escravizam o homem e a civilização contemporâneos: em seus contos há o multifacetado e dolorido noticiário das angústias e ruínas de nosso tempo, que vem inquirir sem dourar a pílula. Histórias de pertinência e atualidade que nos deixam com os nervos à flor da pele, pois nos inquietam e comovem pelas circunstâncias e pelos absurdos que enunciam, pela pluralidade e universalidade que refletem. E, sobretudo, pela evidência escatológica e pela leitura que o autor faz de uma paisagem de desassossego, feridas e encruzilhadas cruciais de certa (e conspurcada) modernidade, no que alberga sua dimensão humana, pois o que é revelado é aquilo que percorre os séculos e as culturas, o que sempre nos angustia e nos faz pensar sobre nosso lugar e nosso destino e também os da própria literatura nesse ambiente cada vez mais inóspito em que vivemos — e como relembra Rilke: “a vida é mais pesada que o peso de todas as coisas”.

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Prefácio do livro À flor da pele (editora Laranja Original), de Krishnamurti Góes dos Anjos, escrito por Ronaldo Cagiano. Góes dos Anjos é de Salvador, escritor, pesquisador e crítico literário. Ronaldo Cagiano é escritor, poeta e crítico literário.