* Por Nilma Lacerda *

Seguindo a orla marinha da cidade em direção ao Sul, ainda no centro histórico e logo após a igreja da Candelária, está o Museu Histórico Nacional. Localizado em um conjunto arquitetônico desenvolvido a partir do Forte de Santiago, na Ponta do Calabouço, o belo edifício foi ponto estratégico para a defesa da cidade do Rio de Janeiro até o início do século XX.

Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2000.

José Saramago lançou A Caverna, dia 13 último. Estive lá, no pátio do Museu Histórico Nacional, na noite que era ainda de primavera, embora tão próximo o verão. Não sei por que o telhado transparente sobre nossas cabeças, plástico esticado em estrutura de metal, os vãos bem ajustados em volta dos troncos das árvores. Um artifício supérfluo, ainda que nos ofereça uma visão instigante do céu, da lua crescente e das enormes palmeiras. Melhor seria estarmos em um auditório convencional ou, neste pátio, correr o risco das intempéries. Mas quem há de querer correr esses riscos, em era de confortos garantidos? A noite – prisioneiro espetáculo guardado por sentinela de plástico. Que guerra estamos travando? – perguntamos Saramago e eu.

O conforto de concordar com o que diz um Nobel não me traz amparo. “Estamos perdendo a espessura”, ele diz, “perdendo a capacidade de indignação, de animadversão, e a democracia nunca esteve tão vazia como está agora.” “Bill Clinton é o último presidente dos Estados Unidos.” – dissera pouco tempo antes, e de forma profética, Norman Mailer, num Congresso de Escritores nos Estados Unidos. “As corporificações mundiais já não precisam de comissários políticos. Elas têm o poder.” – Saramago afirma. Tão pessimista a reflexão, fico perplexa, meu próprio trabalho como batata quente nas mãos. Para que fazer o que faço? Para que ler? Para que escrever? Tudo está dado, o real é um cubo previamente configurado, as faces rigorosamente iguais e previstas as arestas de exclusão.

Para quê?

Mas o senhor Saramago escreve. Escreve e está aqui a lançar mais um livro e a falar sobre o que o moveu a escrever este livro – quase como se não confiasse na capacidade do leitor de sabê-lo. Cioso de sua verdade, o senhor Saramago empaca, teimoso como a mula que reclama do peso excessivo sobre o dorso ou do desvio do caminho que sabe ser seguro. Fico com a imagem, referida em entrevista relâmpago à televisão. “Ele é teimoso como uma mula, e como precisamos todos desta teimosia dele.” Mais tarde, irei me assustar com a contundência irreverente. Quando escrevo, não me assustam cruezas, irreverências, profecias. A palavra falada, no entanto, repercute em mim (certas vezes) como cordas tensas de um instrumento musical que não manejo bem. As éguas da noite vêm, me atormentam por todo o sono. Preciso arrancar a raiz desta dúvida, comê-la, incorporar o que me fortaleça, lançar fora o que me enfraquece.

Cumprimentei Saramago à hora do autógrafo, agradeci a teimosia dele e não devo ter me esquecido de dizer  – teimosia de mula.

Lembro de Vanda Medrado, em nossa conversa da semana passada em Viçosa, sobre o trabalho educativo no assentamento do Movimento dos Trabalhadores sem Terra e das educadoras do Alfabetização Solidária, as mulheres da favela da Rocinha, buscando a espessura das mal traçadas linhas para fazer, belo e resistente, o avesso do bordado. A letra pede teimosia, em força de instinto animal que pressente o desastre, nega-se a avançar para ele e, no que resiste, afirma a escolha da vida. A igualdade entre as pessoas não pode deixar de pressupor o manejo da leitura e da escrita, em uso pleno desse instrumento para a vida em sociedade, para as perguntas políticas e o fino desenho das questões existenciais.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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