Noturno

É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Alex Andrade *

Chove um pouco e a goteira começa a surgir pelo teto.

Está escuro e ninguém aparece na sala para ver o que está acontecendo.

Quando amanhece, a moça acorda com o barulho dos pingos que ainda insistem em cair. Lava o rosto e senta no sofá. Deixa a água pingando e manchando o chão vermelho de cimento queimado que está por toda parte do pequeno cômodo.

Talvez ela não saiba, nem lhe importava naquele momento, com toda confusão que pairava em sua cabeça, nada era mais necessário do que sobreviver.

A casa museu de Leon Trotski, em Coyoacan, na Cidade do México, também tem um chão vermelho como o seu, sobre a cama dele há um chapéu e uma bengala. No armário, seu pijama favorito, algumas roupas e os sapatos da companheira Natália Sedova. Tornou-se um dos museus mais tristes do mundo. Estão depositadas naquele jardim as cinzas do revolucionário russo, assim como as de sua companheira. Ali, em agosto de 1940, o catalão Ramón Mercader desferiu o golpe de picareta na cabeça que mataria o segundo do triunvirato que comandou a Revolução Russa em 1917.

Stalin não só perseguiu Trotski até o México como dizimou quase toda a sua descendência: só restaram dois netos.

Na casa da moça que não sonhava sequer saber quem era Trotski ou Stalin, muito menos saberia algo sobre o nazismo, comunismo, a tristeza era acompanhada de um silêncio fúnebre.

O chão vermelho com as manchas de água da goteira, outrora estava encharcado de sangue. Sobre a cama do pequeno quarto vazio, intocado, há um uniforme de escola da filha. No armário, seu vestido preferido, algumas sandálias rasteirinhas e um par de sapatilha de balé, que era o seu grande sonho, tornar-se bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Igual àquela moça da televisão, como é mesmo o nome dela Jandira, a mãe perguntava toda orgulhosa para a vizinha, que viera lhe abraçar.

– Ana Botafogo, respondeu Jandira, emocionada.

Que pezinhos pequeninos, olhavam-se e sorriam. Na mesinha em frente a cama, um espelho cheio de fotos xerocadas, tudo dá a impressão de ser triste. Mas as fotos mostram uma menina cheia de sonhos, feliz, que em volta de tanta falta de esperança, o que lhe transbordava era o amor.

A mãe abriu a gaveta, olhou pela milésima vez assim por cima, que era para não chorar.

O que restou é um álbum, a carteirinha da escola, um bilhetinho amassado que as amigas lhe deram quando fez dez anos, e que ficou guardado dentro da gaveta como forma de conservar o carinho. No futuro, vou lembrar de cada uma delas, a menina havia escrito abaixo das declarações das amigas.

A goteira continua pingando na sala, não é a casa de Trotski, nem mesmo na Cidade do México. Não é o nazismo. É o Rio de Janeiro. É a casa de uma das vítimas da violência que assola as crianças desse país, é a casa de uma mãe que não dorme, que liga a televisão e fica perplexa. Seu rebento já era. Atingido em cheio pela brutalidade de duas balas que lhe acertaram a cabeça e o tórax, dentro da própria casa. São tantos nomes, poucas idades, fotos no jornal, manchetes que abalam a moral da sociedade.

A imagem da televisão.

A sala muda.

A imposição do medo.

Quando os tiros pipocam lá fora, resta deitar, fechar a porta com os trincos novos, para que ninguém mais venha arrombar com tanta facilidade outra vez e, orar.

Ninguém mais viu a menina bailando pela sala.

Quando eles entraram, o único som que se ouvia lá dentro era a melodia triste de Chopin:

Nocturne.

Caí a noite…

*

Alex Andrade é escritor, autor de As horas

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