É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Sérgio Tavares *

Vanessa acorda contando. Hoje foi cinco. Cinco dias para seu aniversário.

A casa acorda com ela. O sol ganha permissão para entrar pelos tijolos, o pai deixa de andar na ponta dos pés. O café tá coado, mas ela não toma. Prefere o da escola, com leite. Dá um pulo da cama e veste o uniforme. Faltam cinco dias, pai! Bom dia, minha filha! Se abraçam. Sempre foi agarrada. Tô indo, mãe. Cadê o beijo? Te espero.

Zé calça as botas de borracha. Vamos, Vanessa! Duas conduções. Obra longe. Pegou para ganhar um dinheirinho a mais para a festa e o presente. Homem bom, o Zé, tem a filha como sua princesa. Não temos luxo, mas faz o que pode. Trabalho não mata ninguém, mulher. Por ela, faço o que for preciso.

Eles saem pela porta e descem o morro. Desse tamanho e ainda de mãos dadas com o pai! O Zé, eu só vejo agora à noite. Vanessa, daqui a pouco tá de volta. Lembra que você combinou de irmos comprar as coisas da festa na cidade, mãe? Sim, depois da escola. Vai, que seu pai tá te esperando. Faltam cinco dias! Te espero.

O dinheiro, o Zé tirou do salário para repor com o extra. Não é muito, tá na gavetinha, compre o presente que ela escolher. Vanessa pediu para fazer uma festinha e chamar as amigas da escola. Não são muitas, pode? Vou conversar com seu pai. O dinheiro é suficiente para o bolo, os refrigerantes e o presente. Posso ir comprar junto, mãe? Pode.

Eles saem pela porta e deixam o silêncio. Tenho que me apressar com as tarefas da casa. Varro, limpo, lavo e preparo o almoço. Sento numa cadeira e espalho os grãos de feijão sobre a mesa. Começo a separar os que vou cozinhar para a janta. Escuto a porta se abrir às minhas costas. É Vanessa, que chegou da escola. O almoço tá pronto, filha.

Mas não é. O que você está fazendo aqui, homem? Zé tem o rosto sujo e os olhos vermelhos. Apoia a mão na mesa, arrasta outra cadeira e cai. Preciso te contar uma coisa. As palavras tremem nos lábios. O que foi, Zé? Preciso te contar uma coisa. Se treme todo, o rosto sujo. Ele fala, enquanto continuo a separar os grãos. Deita a cabeça sobre a mesa, treme ainda. Os grãos dançam. Estou começando a ficar preocupada com a Vanessa, Zé. Ela já devia ter chegado da escola.

Ele ergue o rosto, sujo, e olha para mim. É sobre a Vanessa que te contei. Ela já devia ter chegado, Zé. Ele se levanta. Preciso que venha comigo. Não posso, estou esperando ela para irmos à cidade comprar as coisas da festa. Eu prometi que a gente iria depois da escola. Faltam cinco dias! Ele sai pela porta, sozinho.

Posso escolher o meu presente? Pode. Te espero para irmos comprar depois da escola. As horas passam, o sol se retira na ponta dos pés. Onde está Vanessa? Estou preocupada.

Zé volta pela porta, sujo e vermelho. Vem acompanhado de parentes, vizinhos e não-sei-quem, que enchem a casa, escura e barulhenta. Uma vela é colada em cima da mesa, e a chama dança juntos aos grãos, enquanto circulam, sussurram, rezam. Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu.

Eles giram em volta da mesa, para se desmancharem em seguida onde não é luz. Me tocam a cabeça, os braços. Preciso que venha comigo. Enquanto circulam, sussurram e rezam, dizem venha comigo. Mas não posso. Tenho que ficar aqui esperando para irmos à cidade comprar as coisas da festa. Eu prometi que a gente iria depois da escola. Posso contar os dias pro meu aniversário, mãe? Pode, agora dorme com Deus, minha filha. Eu prometi para ela. Pra Vanessa, que não chega.

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Sérgio Tavares é escritor, autor de Cavala, entre outros

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