Por Ricardo Bellissimo *  

Já considerado, para muitos cinéfilos, referência fundamental para se inteirar com a produção mundial de filmes independentes, o Festival Indie completou 15 anos consolidando-se como uma importante janela para um universo fílmico que não está vinculado a qualquer tipo de manipulação ditada pelos grandes estúdios.

A relevância deste festival também está diretamente ligada à proliferação das novas tecnologias de captação de imagens, que assim foram barateando substancialmente os custos de produção, enquanto diretores foram adquirindo independência cada vez maior em sua autoria. A disseminação desses filmes     também foi responsável para elevar o aprofundamento do pensamento crítico do espectador, influenciando, inclusive, novas e velhas gerações de cineastas.

Para falar mais sobre esse crescente universo cultural, a São Paulo Review entrevistou a mineira Francesca Azzi, diretora e curadora do Indie, e que teve a sua primeira edição em Belo Horizonte em 2000, e sete anos depois conquistou a sua primeira exibição na capital paulista.

Azzi, que é formada em jornalismo e também uma das sócias da Zeta Filmes, produtora e distribuidora de filmes independentes no Brasil, apresenta um panorama sobre o mercado para esse tipo de filme no Brasil e no mundo, o processo de curadoria, censuras, entre outros temas.

Como é feita, basicamente, a curadoria para os filmes do Festival Indie? E quais são os principais critérios que você, como curadora, leva em consideração? Nos quinze anos em que fazemos o Festival Indie, a curadoria sempre trabalhou com a perspectiva de buscar filmes sem a exigência de uma data ou país específicos. Não há preocupação, por exemplo, do ano em que um filme é lançado para fazer parte do Indie. Mas quando estamos a 5 meses de iniciar o festival, aí, sim, intensifico a busca de filmes mais recentes, em geral pescando obras independentes e que tem maior aceitação em festivais como a Berlinale, o Festival de Cinema de Toronto e também o Festival de Veneza.  Por outro lado, com a facilidade hoje em dia de se inteirar com a produção independente através da internet, a partir da disponibilização de inúmeros títulos on line, corroborou e muito nessa nossa curadoria.

E como se definem os principais parâmetros de um filme para que este se enquadre no quesito independente? O princípio, por excelência, a uma produção independente é, justamente, que ela não esteja a cargo de nenhum estúdio. E isso, por sua vez, torna o filme muito mais autoral. Não há uma definição única, pontual, para se enquadrar um filme na categoria independente. Nem um baixo ou um alto orçamento pode ser um quesito. E também não é só tédio, melancolia e silêncio, e que em geral predominam nos filmes independentes, que o fará enquadrar-se nesse estilo de produção, embora seja justamente esse o meu gosto pessoal. O que, consequentemente, acaba guarnecendo o Indie com filmes que acabam extravasando mais essas nuanças. Há também filmes independentes que se baseiam nos moldes do cinema de entretenimento, copiando muitas vezes o modelo hollywoodiano, e que, por sua vez, acabam se coadunando ao mercado de entretenimento. E também não é porque o filme seja uma produção independente que não há apoio do governo, seja por meio de editais ou parcerias com as empresas privadas. Na própria Berlinale é feita, muitas vezes, coproduções para se incentivar a produção de filmes independentes, sem que isso comprometa a liberdade de criação do cineasta.

A edição do Indie deste ano deu enfoque para a nostalgia analógica, e que pode ser constatada inclusive na própria vinheta de abertura, com a exaltação da tipografia onde o cartaz do festival é impresso. Por que optou por esse lirismo tecnológico quando o cinema independente trabalha hoje, exclusivamente, com tecnologias digitais? Essa nostalgia, na verdade, está bastante ligada ao que se refere às imagens, sobretudo o resgate da película em 35 mm. Por mais que se produzam filmes no formato digital, sempre haverá essa enorme perda no quesito qualidade em relação à película. Essa nostalgia, portanto, está basicamente imbricada com esse passado que continha um padrão de qualidade bem mais artístico. Mais artesanal, até. O próprio cartaz do festival, limitado a duzentas unidades, foi feito de modo totalmente artesanal, em uma tipografia. E feita, ainda, por Ademir Matias, o último tipógrafo existente em Belo Horizonte. Enfim, é mais uma forma de dialogar com o passado, a fim de sempre resgatá-lo, e de preferência em sua máxima plenitude.

A edição deste ano também homenageou dois cineastas do leste europeu, a russa Kira Muratova [foto] e o lituano Sharunas Bartas. Como o cinema deles é visto em seus respectivos países de origem? Sharunas é muito bem visto e igualmente apreciado na Lituânia, onde montou a primeira produtora independente deste país, a Kinema Studio, e que serviu e ainda serve como grande incentivo a outros cineastas a produzir seus próprios filmes desde a era pós-soviética. Já a Kira Muratova sofreu grande censura, não apenas por ser mulher, mas porque a temática de seus filmes dialogam constantemente com momentos íntimos da vida pessoal, o que foi visto como uma ameaça burguesa aos costumes pregados até então pelo Estado soviético.  Após a conclusão de seu filme O Longo Adeus (1971), Muratova ficou inclusive proibida de filmar por vários anos. Teve ainda a circulação de outros filmes proibida e foi também advertida, por censores, para parar de fazer filmes com temáticas contemporâneas. Sua situação só vai mudar de fato em 1986, com o surgimento da Glasnot, e a consequente supressão de inúmeras outras obras suas anteriormente proibidas. Seus filmes tiveram influência, inclusive, em algumas obras do cineastas russo Alexander Sokurov.

A edição de Belo Horizonte, onde o festival começou, e a de São Paulo possuem alterações significativas em sua programação? A grande diferença é que a edição de BH, desde o seu início, tem um comprometimento com a produção de filmes independentes brasileiros, e esse ano dedicou uma retrospectiva ao cineasta Jairo Ferreira.

E por que filmes brasileiros não estão programados para a edição do Indie em São Paulo? Por uma questão de logística, basicamente, já que fica muito próximo de outros festivais, sobretudo o de Brasília, e que para o próprio cineasta é interessante estrear por lá, além dos festivais que ocorrem no Rio de Janeiro e em outras cidades. E como em São Paulo o final do Indie também coincide já quase com o início da Mostra Internacional de Cinema, achamos mais apropriado enxugar um pouco a programação.

Como vê o corte de verbas no Sistema S (Sesc, Sesi, Senai)? Isso, de algum modo, irá afetar as próximas edições do Indie? Cortes de verbas para a cultura são sempre muito lamentáveis, mas, por ora, como o Indie já se tornou um festival de referência fílmica na cidade de São Paulo, ainda não foi afetado por esse corte feito pelo governo ao repasse de verbas do Sesc. Mas esse ano, ao contrário dos outros, o Sesc cobrou ingressos para o Indie, cuja entrada até então era gratuita, ainda que isso não estivesse diretamente ligado a esse corte nas verbas, mas, sim, devido a uma política interna do próprio Sesc. Em Belo Horizonte, a entrada continua gratuita.

E como está atualmente o mercado internacional para os filmes independentes? E no Brasil? O Brasil ainda é muito tímido em relação, por exemplo, à França e à Alemanha, que possuem um mercado muito aberto e crescente a esse tipo de produção. Mas eu sempre trabalho com a perspectiva de um aumento no público do Indie, o que me motiva assim a explorar cada vez mais esse filão. Em Belo Horizonte, a Zeta Filmes teve o projeto Fluxus em que deu preferência a exibir filmes em museus e galerias. Se um Kinoplex da vida não tem interesse nos filmes que distribuo, eu também não tenho interesse em exibir para um público que não tem nenhuma curiosidade nesse tipo independente de produção. A Zeta faz seu papel de curar e lançar um título independente no mercado, e se, daí em diante, o público gostar ou não, eu ao menos já fiz o meu papel de trazê-lo ao conhecimento das pessoas.

E quanto ao formato documentário, ele também pode ser enquadrado na categoria de um filme independente? Eles também estão presentes no Indie? Sem dúvida a maioria dos documentários pode ser considerada uma produção independente. E já há algum tempo foram criados festivais específicos para a sua exibição, como, por exemplo, o É tudo verdade, no Brasil, entre muitos outros festivais dentro e fora do país. Por isso não é muito comum ter documentários na programação do Indie, embora este ano tenha sido exibido O Nascimento do Saquê (2015), feito por um americano, e que ao mostrar todo o processo de seleção, processamento e tratamento do arroz numa das únicas destilarias artesanais ainda em atividade no Japão, resgatou com brilhantismo toda uma ancestralidade de valores culturais do Japão.

Em países onde há forte censura política, é possível ainda escavar produções independentes?  Ou seu trabalho, como curadora, fica bastante comprometido por conta disso? Sim, é possível. Principalmente no Irã, onde, mesmo sendo muitas vezes proibida a exibição de filmes autorais por lá, é possível vê-los em outros festivais internacionais de cinema, cujos curadores têm profundo interesse no que está sendo produzido em outros países. O mesmo ocorre em locais como a Síria e o Líbano. E muito na China, também.

É raro ver adaptações literárias em filmes independentes? Ou a própria adaptação já colocaria em xeque a noção de uma produção autoral? Existe, sim. Mas em geral as releituras não são muito fiéis, tendo, por conta disso, uma adaptação bem mais livre e, consequentemente, mais autoral. Da mesma forma, filmes cujo enfoque centra-se em temáticas históricas, também acabam tendo um tratamento muito mais ficcional, ainda que muitos deles dialoguem com os fatos vivenciados na realidade e testemunhados por gerações passadas ou mesmo presentes.

É possível conceber, hoje em dia, uma política mais efetiva de difusão do cinema independente em salas comerciais? E quanto ao Brasil? Há o projeto do governo de São Paulo em abrir salas para a exibição de uma programação mais alternativa nas periferias, mas é possível que, atrelada a essa proposta, seja exigida a dublagem de vários títulos, o que, para mim, já arrasaria com um filme. Seja como for, prefiro sempre trabalhar com a perspectiva do desafio a qualquer outra tipo de facilitação, como seria o caso com essa possível ideia da dublagem. Também acho que é sempre melhor educar o público pela persistência de um projeto, a continuidade respeitosa e séria a um projeto, e que assim acaba naturalmente criando, nas pessoas, o hábito de consumir estilos diferenciados entre as mais variadas formas de expressão artística.

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Ricardo Bellissimo é escritor, jornalista e historiador, autor dos livros Sufoco e Negro amor, entre outros

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