* Por Krishnamurti Góes dos Anjos *

Em Horizonte de espantos, novo livro de contos do poeta, prosador e crítico brasileiro Ronaldo Cagiano, atualmente radicado em Portugal, há a citação de uma frase de Otto Maria Carpeaux que pela pertinência de conteúdo nos faz estremecer. “… estamos vivendo a queda apocalíptica do nosso mundo e buscando o nosso caminho nas trevas…” Cagiano nesta sua mais recente produção nos leva a (re)conhecer quais são essas trevas do nosso viver aqui e agora.

Quatorze ficções estão reunidas na obra. Textos que refletem a nossa árdua travessia nesta viagem a que damos o nome de vida. O autor, por vezes, utiliza-se, a maneira de um Tchekhov, de certa reticência artística, por vezes constrói textos de teor filosófico como é Uróboro – arguto estudo da contradição humana no qual o ficcionista se notabiliza pela economia de meios. Narrativa despojada, seca, direta. Mostra-nos que, mesmo na pasmaceira de uma vida anônima, fremem contradições, impulsos e toda uma variada gama de sentimentos humanos – “Estrangeiro”. Ao abordar certas situações ilógicas e aberrantes, convoca a ficção fantástica para que melhor se desnude a face encoberta pelos condicionamentos como ocorre em “Indexações do desconhecido”. Até mesmo nos contos menores, realizados em forma de crônica, nos impressiona por um pormenor, uma observação, uma frase, uma definição de existencialidade. O que importa ao ficcionista e ele sabe muito bem fazer, é utilizar a linguagem como instrumento com o qual, na sua verticalização sugestiva, aplaina arestas, desbasta o acessório e acaba por impor aquilo que é o núcleo, e constitui a essência, o cerne do instante revelador dos contos. Senão vejamos:

Em “A intrusa”, temos o fantástico. Há nesse conto uma linguagem paralela sugerida pelo que não é dito, mas que é pensado, e que pesa mais que qualquer palavra explícita. Nas entrelinhas pulsa um comportamento humano repleto de taras calculadamente ocultas. Um fantástico com laivos de comicidade. Imagine-se a situação. Uma festinha paroquial em uma pequena cidade, e íntima somente para a ‘nata’ da sociedade, a festejar os cinquenta anos de sacerdócio de um padre. E eis que, surge uma personagem intrusa e indesejada que participa da festa e ouve os discursos. Uma indefesa barata! Pois, uma barata que pensa, e muito! Como medo de ser morta a certa altura a barata reflete:

E se todos ali, contaminados pelo olhar inquieto do padre, dessem-se conta daquele bichinho nojento, “ai, meu deus, essa gente toda em polvorosa com medo de mim, um corre-corre danado poderia eclodir em meio à descoberta da invasora, eu que tanto tenho sido excomungada ao longo dos séculos, que resisti à bomba atômica, às invasões dos Bush, ao tsunami, a Chernobyl, a Hitler, aos arroubos de Putin e Erdogan, aos talibãs, ao estado islâmico, às torturas do coronel Brilhante Ustra, aos destemperos de Trump, às boçalidades e delinquências familicianas de Bolsonaro & seus porquinhos adestrados, ao maluquinho norte-coreano, à arrogância daquele advogado com seus cabelos argênteos despachado para o inferno pelo Luquinha, ao caralho-a-quatro, ah, não.”

Já em “Vestígios de um mundo-pós sem nome”, O tema aparentemente central se dilui e surgem indícios de um tema subjacente, um tema oblíquo que será, em última instância, a verdade ficcional buscada. O autor-narrador conta-nos a história de uma pequena família muito pouco inclinada a crendices e forças ocultas. Muito bem; pai, mãe e filha em um belo dia, recebem como presente para a filha, um cachorro muito bonitinho, oferta de uma certa mulher, madrinha da filha do casal, tida e havida nas redondezas como benzedeira. Seja por tal razão, seja pela coincidência com a data da oferta, o cachorro recebe o nome de batismo de Halloween (aquele disparate no qual se comemora o dia das bruxas).  Ocorre também que o cachorro foi ofertado lá pelos inícios da tal pandemia de covid que levou o mundo a viver compulsoriamente sob o regime de reclusão. O resultado é que a família, acrescida do manso Halloween, passou a viver meses e meses na reclusão, até que acontecimentos nefastos começaram a ocorrer. Todos relacionados a um certo aviso que começou a aparecer diuturnamente para os familiares. O pai a sonhar todos os dias com vozes a gritar-lhe nos sonhos a mesma sentença “Cuidado com o que fazes”, a mãe ao abrir a caixa do correio também encontra todas as contas da família carimbadas com a mesma mensagem e, até a mocinha, dona do cachorro, recebeu mensagens pelo computador. “Cuidado com o que fazes”. Positivamente um conto como este, revela a larga capacidade inventiva do autor e o assustador desfecho aponta para uma das mais perigosas trilhas das trevas em que a humanidade se meteu: O terror psicológico. Querem saber precisamente como? “Um outro vírus instalara-se no seio daquele domicílio e estava minando suas resistências e a imunidade emocional do lar, a ponto de não saberem mais distinguir o que era fato e o que era invenção de um inconsciente já perturbado por tanto desconforto, gerando monstros indestrutíveis e esfinges do incognoscível.” Esse conto é digno de figurar em uma antologia mundial do gênero, pela simples razão de tocar no âmago de uma questão que sequer damos conta. A miséria paralela que se estabelece em momentos de extrema dor e aflição como foi/é a pandemia da covid. Aquela na qual se aproveita da confusão reinante para que se beneficie outros interesses. “Vestígios de um mundo-pós sem nome” é conto de minudências tão sutilmente emaranhadas, e singular efeito único conduzido de forma tão cumulativa, que o leitor, mesmo de sobreaviso parece sentir o toque – e estremece.

“Vórtice” é outro conto que merece figurar em antologia. Em junho de 2013 ocorreu no Brasil uma série de manifestações que tinham como críticas principais o aumento das tarifas de transporte públicos, a violência policial, a falta de investimentos em serviços públicos (como saúde e educação), o poder dos oligopólios de comunicação, a hegemonia e dominação de partidos políticos sobre os movimentos populares e as falhas da democracia representativa. Alguém se lembra disso hoje? Muito bem; em uma daquelas manifestações, e por um acaso da vida, um casal que havia enfrentado as atrocidades do golpe militar de 1964, se encontra em meio ao turbilhão desses protestos em plena Avenida Paulista. Em meio a cenas de horror, a barafunda de gás lacrimogêneo, correrias, bombas de efeito moral, sirenes e quebra-quebra generalizado dá-se o encontro. Como isto se deu quase quarenta anos depois, e de maneira fortuita, eles decidiram se afastar dali a fim de saber que caminhos tinham seguido durante todo aquele tempo. Mas não havia transporte de metrô. A baderna geral fechou as estações. A alternativa? Tomar um ônibus. Superlotado como sempre, não importando se há ou não manifestações, a velha e muito conhecida lata de sardinhas a sacolejar de um lado para o outro. Dentro do coletivo, sardinha de todo tipo. Inclusive algumas bolivianas funcionárias de confecção de roupas, empregados/explorados em subempregos e salários irrisórios. Para não desfigurar o efeito da cena, damos a palavra ao contista, a ver o que acontece, sem, no entanto, dar spoiler:

… “ouvi, vindo do final do carro, como uma flecha alucinada, a voz que calou outras vozes, como num suplício e numa admoestação:

¿Pero este colectivo para em algún momento o estamos todos yendo a la casa del chabón?

 Olhamos todos na mesma direção. Aquela inquirição indignada, lavrada num portunhol que comunicava uma apreensão e uma incerteza, partia de uma jovem espremida no exíguo espaço que dava acesso à escada traseira. Suas feições amorenadas, cabelo liso como dos indígenas de nosso espoliado continente e um olhar agudo próprio daqueles que conhecem ancestrais sacrifícios, diziam de alguém tão deslocado e estrangeiro, refugiado do inconcebível, como éramos eu e Paloma, tantos anos depois, naquele ônibus inflado de pessoas, como fôramos num passado congestionado de dúvidas: carregávamos nossas utopias, sem saber em que destino desceríamos.”

Esse conto vai aos poucos se revelando, na medida em que o autor-narrador aprimora a sua revelação e ilumina mais o seu instante crítico. Aquele em que se constata com todas as letras no que afinal desaguou o tal regime militar que governou o país por mais de 20 anos. Aprofundou o já existente fosso histórico-social da sociedade.  Assim o Brasil atual (2022), um coletivo entupido de gente, em alta velocidade e sem destino! Este quase epílogo da narrativa, que é totalmente inesperado, sobretudo graças à intervenção da personagem boliviana. Um choque tremendo. Só ao terminar a história, o leitor toma ciência de estar diante de texto engenhoso, verdadeira obra-prima no gênero.

Outro texto que não podemos deixar de mencionar ainda, porque cria um metabolismo psicológico no qual as personagens vão se desdobrando e assumindo caráter coletivo a nos mostrar como o sistema reinante (no Brasil e no mundo) já deu provas suficientes de que não é ferramenta a serviço do homem, mas uma finalidade em si e para si, capaz de requisitar sujeitos (tornados objetos) para se reproduzir.  “3 X 4 da Cidade”, é conto multifacetário em pequenos flashs, de como e em que circunstâncias, vai se tornando o viver nos grandes centros urbanos para a maioria do povo brasileiro. De que forma vive por exemplo, uma Dasdores da vida, mulher, pobre, trabalhando em péssimas condições, e ainda por cima arranjou um verdadeiro ‘encosto’ a que dava ilusoriamente, o nome de ‘amor”, um safado que vivia arrimado na cachaça. Ou um personagem – esse representativo de um número cada vez maior de pessoas –, que vai se auto isolando dentro das urbes seletivas e parasitárias em que transformamos nossas cidades. Ou Raimunda que enfrenta a verdadeira via crucis da mobilidade urbana no Brasil, uma verdadeira catástrofe, ou ainda, e finalmente, a morte de Gilson, um diabético, que migrou com a mãe para a cidade grande a tentar vida melhor e que, ao pleitear a aposentadoria por invalidez no INSS, acaba sendo atropelado e estirado, morto no asfalto, atrapalhando o trânsito e sendo apenas mais um número das estatísticas. Este um conto que faz ecoar na memória, a miséria brasileira tão bem cantada no trecho de uma música que ninguém mais ouve: “Não importa nada / Nem o traço do sobrado / Nem a lente do fantástico / Nem o disco de Paul Simon / Ninguém, ninguém é cidadão.” Como bem apontou Jean-Pierre Dupuy, a humanidade tornou-se a fonte do mal, mas este transcende-nos ante a matriz canibalesca e autodestrutiva que adotamos.

Triste reconhecer. Mas o nosso tempo é de divisões, de separações, de descontinuidade, de fragmentarismo. Estamos no reino dos absurdos e monstruosidades. O mundo parece mesmo ter sido tomado, mais ainda do que pela pandemia de covid, por uma espécie de demência neurovegetativa (o Alzheimer é tema recorrente em alguns textos). Assassinatos medonhos, vinganças, delações premiadas, atuação criminosa de evangélicos, feminicídios, políticos corruptos, superfaturamento de obras públicas, lavagem de dinheiro e todas e tantas maracutaias e negociatas com o dinheiro público, governos e governantes abertamente fascistas. “A vida como ela é”, que faria corar de vergonha o próprio Nelson Rodrigues.

A literatura de Ronaldo Cagiano registra e devolve este estado de coisas em termos de procedimentos formais. Não apenas representando figurativamente, fotograficamente esta realidade, mas permitindo uma integração no seu próprio tempo, explorando radicalmente os fundamentos dessa realidade não só para desmascará-los, torná-los visíveis, mas também procurando despertar e estimular a inteligência crítica do leitor. Seguramente o autor é um dos escritores brasileiros de maior consciência artesanal, especialista que é em casar linguagem e inventiva de modo a obter determinados efeitos.  Temos nesse “Horizonte de espantos” a percepção aguda dos grandes criadores literários.

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Horizonte de espantos, Ronaldo Cagiano (Editora Urutau, 77 pág.)

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Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il crime dei Caminho Novo, Gato de telhado, Um novo século, entre outros. Participou de coletâneas e antologias. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O touro do rebanho – obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.