* Por Nilma Lacerda *

Parti, e não sabia da extensão da viagem. Não levava bússola, astrolábio, sextante, cartas de navegação. Nem mesmo máquina fotográfica, gravador, filmadora. O radar é que vinha comigo, e me bastavam o radar, o ardor da errância e a palavra escrita para o registro. Quando a viagem se definiu melhor e me foi confiada a tarefa de redigir o diário de bordo, busquei verificar minha competência. Sabia do mar, a palavra me era íntima, não tinha navio para viajar. Um diário de navegação?

Tantos diários de navegação, cartas ao rei e relatos de naufrágio em minha condição de filha da América Portuguesa. A memória de Marco Polo me atinge. Relatava ao Senhor do Grande Khan as coisas que via e ouvia nas terras por onde passava. Tomo para mim esse paradigma do viajante, eu, que também não viajo para mim mesma, mas para relatar a quem me lê como, por que, para que as pessoas escrevem na América Latina. Movido pelo desejo de desvendar o mundo, de subtrair da geografia a lenda a enchê-la de fantasias, Marco Polo construía um pacto com o olhar do outro, a quem puxava para acompanhá-lo nos empenhos da viagem, nas asperezas do comércio. É com o olhar do outro ao meu lado, às minhas costas, que viajo, e o que trago pode servir para muito, pode servir para nada. A cada um, a maneira própria de usar.

Incorporo a ciência à minha bagagem. Incorporo a densidade da ciência, e não o compromisso do saber contínuo e cerrado que pretende. O saber com que trabalho é descontínuo por minha escolha, as reflexões acontecem também na articulação dos fragmentos, neste projeto inesgotável, impossível enquanto ciência – segundo me diz o historiador Roger Chartier, que supervisionará meu trabalho em estudos de pós-doutorado. Tomo a viagem como uma parábola, a palavra escrita como o ponto fixo, mas não evito que a diretriz se movimente no tempo e no espaço. E – se para saber da palavra escrita na América Latina, a Europa é um destino –, este trabalho só pretende mesmo prestar um serviço a esta América e ser, além disso, razão de comércio.

Esta América, construída como Latina na mirada do interesse alheio, tem se agarrado nas farpas do vento para sobreviver. Votados, com frequência, “ao mais forte potencial”, seus países veem essas expectativas desaparecer, como escrita à tinta em página sobre a qual se derrama um copo d’água. Votados, com frequência, “ao mais forte potencial”, porque têm recursos minerais valiosos, porque cresce o parque industrial, porque o crescimento econômico mostra aceleração de produção e consumo. Um golpe de Estado, uma rasura na Constituição, um tratado assinado com as grandes potências e as futuras grandes potências continuam ausentes de seu destino.

Ausentes de seus destinos, porque não têm estabilidade política, porque não têm solidez monetária, não têm domínio tecnológico – são as análises habituais. A escrita é uma tecnologia de ponta – e este trabalho, que faz dessa ideia seu próprio eixo – não quer perdê-la de vista, em nenhum ponto do caminho, em nenhuma parcela de tempo.

Em minha antiga ilha de Paranapuã, as nações indígenas construíram o precário. O terreno que minha casa tomou para si era virgem de ruínas, e instalei dentro da casa a biblioteca e o escritório, onde comecei a escrever este diário, nascido de memória e esquecimento, de resíduos e excessos, lacunas e repetições e tem, muitas vezes, antes de se instalar no papel, a tela do computador como suporte material.

O oceano – travessia imperiosa de três de meus avós – é hoje paisagem das minhas janelas, folha laminada de um papel que se desenrola à vontade para receber, de mim e do outro que me acompanha, o registro daquilo de que nos vamos apropriando, através da leitura, da observação e troca com a escrita alheia. Oceano, rotas aéreas, estradas, avenidas, ruelas, sendas, senderos, veredas – telas permanentes. Deixando para trás as dilacerações dos sequestros passados e presentes, esta folha de papel, esta tela se impregnam da fragrância das escritas presentes, se encorpam na fibra das perguntas teimosas e dos esclarecimentos que chegam por meio dos estudos de História Cultural, nos seminários de Roger Chartier e de Jean Hébrard, acrescidos, mais tarde, do curso de Antropologia da Escrita com Béatrice Fraenkel, na mesma Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais,em Paris. Silviano Santiago e Eduardo Galeano, Ángel Rama e Octavio Paz são guias inestimáveis na compreensão desta América em que habito e pela qual me ponho a viajar.

*

Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil

*

Imagem ilustrativa: cena do filme “Limite”, de Mário Peixoto

 

Tags: ,