O meu irmão

* Por Davi Koteck *

Quando eu era criança e me sujava com areia molhada, meu irmão ajudava a tirar minha roupa e a esfregava no tanque com o movimento parecido ao de um balanço. Lembro que toda vez que isso acontecia, a barba rala dele ficava com cheiro de sabão em pó.

Depois, fomos morar com um homem mais velho, que se chamava de pai, embora meu irmão o chamasse sempre pelo primeiro nome. A lomba da rua de casa parecia bem maior do que realmente era, e nas descidas de carro eu sentia frio na barriga. Naquela época meu irmão já tinha a barba mais grossa e dirigia intercalando os pés no freio. Eu via o olhar cerrado dele no retrovisor e falava vai mais rápido, mas ele nunca respondia.

Teve uma vez que chovia tão forte ao ponto de ouvir o barulho das gotas. O homem mais velho abriu o quarto do meu irmão e disse que porra é essa, cara. O resto da conversa não deu para escutar, porque o barulho da chuva martelando o telhado era mais alto do que o eco da gritaria. Mais tarde naquele dia, meu irmão foi no meu quarto enquanto eu fingia dormir. Eu estava de olhos fechados, e senti o beijo úmido na testa, os pelos duros do queixo me arranhando como se fossem fios de arame.

A casa ficou enorme sem meu irmão. Naquela altura eu já lavava minhas roupas e não brincava mais com areia. Quando andava de carro, era no banco da frente. O homem que morava comigo descia a lomba com os pés no acelerador, e eu não sentia mais frio na barriga. Uma vez estava escorado no vidro do passageiro. Era tarde da noite, e ele dirigia com o olhar morno, o quebra-sol baixo mesmo sem claridade. Tive a impressão de ver meu irmão do outro lado da rua. Magro, com as pernas finas, o rosto sem barba. Ele andava com a ponta dos dedos entrelaçadas a outros dedos largos como os dele. Quando chegamos em casa, chamei pela primeira vez o homem mais velho de pai.

Meu irmão me visitou algumas vezes depois disso. Na primeira, eu estava sozinho em casa. Ele tinha os cabelos finos e rasos, o corpo mais parco do que antes. Na última visita que ele fez, trouxe Flávio. O Flávio era mais velho do que ele, mais magro do que ele, e tinha a barba turva, cheia de redemoinhos. Disse que era alguém muito especial, e lembro de pensar se ele era mais especial do que eu, mesmo sabendo da resposta.

 

No dia do funeral do meu irmão, meu pai ficou ajoelhado em casa, perto do tanque. Dirigi até o cemitério em terceira marcha, e a lomba da rua pareceu uma linha plana. Flávio estava ao lado esquerdo do caixão, usava um blazer preto amassado, tinha os olhos gordos, a mesma falha na barba, o espaço que sobrava na bochecha. Pus a mão nos ombros dele, dei um beijo seco na testa e senti na hora um cheiro afogado de sabão em pó.

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Davi Koteck é escritor. Fez parte da oficina literária Assis Brasil. Atualmente organiza primeiro livro de contos, O que acontece no escuro

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