Por Alexandre Staut *

“A essência do trabalho do agente é a mesma desde que surgiu essa figura no ambiente editorial profissional: identificar talentos, ser uma interlocutora primordial quanto a temas literários, às vezes também pessoais, encontrar a melhor casa para cada livro, em parte tirando do autor o peso das decisões de carreira, de maneira a ele poder se concentrar na criação obra”. A frase é de Luciana Villas-Boas, criadora da Villas-Boas & Moss Agência Literária, ao lado de Raymond Moss, em 2012.

Hoje, no Brasil, quando se fala em livros, literatura e mercado livreiro, o nome de Luciana está sempre presente. Nesta entrevista, ela fala sobre o período em que foi diretora editorial do Grupo Record, fechando mais de 1.500 contratos de edição e lançando nomes como Alberto Mussa, Miguel Sanches Neto, Luize Valente, Francisco Azevedo, Edney Silvestre e Sergio Abranches; sobre os livros que a formaram; carreira; explica como é a vida de uma agente literária; e ainda fala de política, de forma bastante lúcida; economia em torno do livro; educação no Brasil; entre outros assuntos.

Como você se aproximou do mundo dos livros? Lembra de títulos e personagens que lhe despertaram, no começo da sua vida de leitora? Minha aproximação com o mundo dos livros foi muito natural, havia uma boa estante em nosso pequeno apartamento, minha mãe e meu pai eram leitores, assim como minha irmã, quatro anos mais velha, uma influência em determinado período da infância. A grande leitura dos primeiros anos foi a obra de Monteiro Lobato, que li e reli, um conhecimento que certamente me diferenciava na escola. Mas amei também Mark Twain, que gostaria de reler, porque me liguei mais em Tom Sawyer do que em Huckleberry Finn. No cânone, Huckleberry é mais importante do que o Tom, e deve ter havido algum problema na minha leitura.

Adorava Laura Ingalls Wilder, com Uma casa na campina, Uma casa na floresta, Jovem fazendeiro. Gostei mais de A família do Robinson suíço do que de Robinson Crusoe. Mas, pensando hoje, creio que eu gostava de tudo que tivesse a ver com construção de algo numa situação adversa aproveitando e dando usos diversos a materiais preexistentes, porque esse contexto está nos livros de Ingalls Wilder, nas histórias de naufrágio e em um dos meus Lobatos favoritos, A chave do tamanho.

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Li outros brasileiros que amei como Cazuza, de Viriato Correia, Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. Eu dividia o quarto com minha irmã, e ela brigava comigo porque eu fechava os livros para chorar e alto.

Finalmente, gostaria de mencionar dois livros muito queridos e dos quais nunca mais tive notícia. Um se chamava Minha amiga raposinha, a história de um menino que pega um filhote de cachorro para criar e ele se transforma numa raposa, que lhe cria um bocado de problemas. Animais em geral e cachorros particularmente eram e são ainda uma fixação minha. O livro se passava na Inglaterra, mais ou menos contemporâneo, isto é, anos 60. De outro, consegui algumas informações, mas não a edição brasileira, Crepúsculo da magia, uma história medieval de um menino que ganha de uma maga uma concha que esquenta em seu bolso quando estão falando dele, o que obviamente lhe dá muito poder. É uma lenda alemã. Eu pensava que era inglesa, mas realmente o nome da maga era Agnes, bem alemão. Se alguém tiver notícia desses livros, ficarei grata.

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E quando percebeu que queria trabalhar neste meio? Quando eu estava em processo de definir o que faria profissionalmente da vida, não havia a opção de ser editora de livro. As editoras brasileiras eram pequenas ou médias empresas, familiares, os profissionais eram os próprios filhos e parentes, e não haveria possibilidade de eu receber um salário minimamente decente. Aquele maravilhoso ambiente editorial do qual eu tinha notícia da existência nos Estados Unidos era um sonho tão inalcançável que eu não perdia muito tempo com isso. A possibilidade de ser um editor de livro profissional com um salário razoável é muito recente. Estudei História mas acabei trabalhando como jornalista. Depois de dez anos de carreira na imprensa, fui editora do suplemento Ideias, do Jornal do Brasil e, no jornalismo, foi onde me senti em casa. Sempre disse que não sou da notícia, mas da análise. Sou do livro. Passei a conversar regularmente com os editores e fiz da coluna do suplemento algo menos literário e mais editorial, para mexer com as pessoas do meio. Acabaram surgindo convites para mudar de lado do balcão. Não tive dúvidas.

Dos tantos contratos que fechou na Record, o que mais lhe chamou a atenção? Algum tema? Autores e livros curiosos? Novos movimentos artísticos no mundo da ficção? Tenho impressão que minha maior contribuição como editora foi abrir a Record para a nova produção literária brasileira. A casa sempre fora forte na literatura brasileira, mas principalmente enquanto reinou sozinha no mercado editorial, até mais ou menos o final da década de 80. Nas décadas de 70 e 80, conseguiu atrair para seu catálogo grandes autores consolidados por outros editores. Foi o caso de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, até Dalton Trevisan. Comecei a trabalhar lá em 1995, e a editora já enfrentava grande concorrência, primeiro de projetos mais semelhantes ao dela, como o da Rocco, mas depois de casas com outras propostas, como a Companhia das Letras. Aliás, dando seguimento e ilustrando a resposta anterior, foi essa concorrência que me abriu a possibilidade do emprego. Já lá dentro senti que era preciso um engajamento maior em revelar novos talentos e lançar melhor autores que eram reconhecidos mas não tinham ainda uma carreira totalmente consolidada. Era uma necessidade em função da concorrência, mas que eu também percebia como o trabalho essencial do editor.

Consegui atrair, contribuindo bastante para suas reputações literárias, nomes como Manoel de Barros, Cristovão Tezza, Raimundo Carrero, Lya Luft. Soa meio cretino me expressar assim, mas acho que ninguém negaria a veracidade do que estou dizendo. Em todo caso, o maior orgulho é ter praticamente lançado Alberto Mussa e descoberto Miguel Sanches Neto, Luize Valente, Francisco Azevedo, de certa maneira Edney Silvestre, embora ele já fosse famoso como jornalista, Sergio Abranches, tanta gente que não dá para citar todos os nomes.

A missão do editor é descobrir o novo. Atrair com grana ou outras condições o nome já consolidado faz parte do negócio, empresarialmente é corretíssimo, mas me parece que para a história da literatura e da cultura não tem muito mérito.

Sempre dei muita atenção à não-ficção. Outro dia acompanhei uma discussão, que considerei estéril, sobre quem lê mais: a esquerda ou a direita. Já nem compro mais essa polaridade, mas o que me incomodou ia além disso. Para o mundo das ideias e para o editor, é importante ir contra o pensamento hegemônico. Jogar luz sobre e se ligar no que não está sendo dito pelo Poder. Enquanto o PSDB esteve no comando do Brasil, publiquei muitos nomes que seriam mais representativos da chamada esquerda, muito ligados ao Fórum Social, de Antonio Negri e Tariq Ali a Naomi Klein, de Muniz Bandeira a Carlos Nelson Coutinho, que para a Civilização Brasileira retraduziu e organizou a obra completa de Gramsci. Depois de o PT se instalar no poder e logo começar a dizer a que vinha, achei importante levar para a editora nomes como Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo.

Ainda na não-ficção, entre os estrangeiros, fico prosa quando penso que fui responsável pela tradução brasileira de Jared Diamond _ de Armas, germes e aço e Colapso _ e Michael Sandel, autor de Justiça, uma leitura muito importante nos dias de hoje. Míriam Leitão diz que contribuí para sua carreira, o que me envaidece enormente, embora eu saiba que ela seria quem é eu existindo ou não. Seja como for, para os brasileiros especificamente, sua obra é essencial, e Saga brasileira, que publiquei, e História do futuro, que agenciei para a Intrínseca, brilham como diamantes da minha carreira no meio editorial.

Nenhum audiovisual permite uma viagem tão intensa quanto a leitura. A descoberta da linguagem de cada autor, seus códigos internos, é uma experiência inebriante e de prazer estético insubstituível. Quem passa a dominar esse jogo nunca mais o larga”

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O que o leitor quer dos livros e dos escritores, nos dias de hoje, em tempos de tantos estímulos, como, para citar um exemplo, as dezenas de seriados de TV? Nenhum audiovisual permite uma viagem tão intensa quanto a leitura. A descoberta da linguagem de cada autor, seus códigos internos, é uma experiência inebriante e de prazer estético insubstituível. Quem passa a dominar esse jogo nunca mais o larga.

Mais que qualquer outra arte, a literatura abre o cérebro, afia neurônios, desenvolve e intensifica as sinapses. A leitura em geral permite que a mente humana aprimore seu processo associativo e contextualize novas informações, dando-lhes melhor aproveitamento.

Creio que os leitores e aqueles que querem se tornar leitores mais ou menos sabem disso. Infelizmente, não é tanta gente, porque o hábito da leitura foi descuidado por nossa sociedade por um tempo longo demais.

Em meio a atual crise no setor editorial, quais são as possíveis saídas, em seu ponto de vista? A saída do setor é a saída do País. A economia tem que retomar o crescimento para as pessoas poderem voltar a comprar livros. Diga-se que o varejo do livro caiu menos do que todo o resto da economia. Se comparar com eletro-eletrônicos então… O mercado brasileiro de livros tem um potencial inigualável no mundo. Nenhum país tem tanta população para se tornar leitora como o nosso, e pelo menos nos últimos tempos realmente se ampliou a consciência sobre a importância da leitura.

Em alguns países leitores, um autor que vende vinte mil exemplares de um livro diz que a obra foi mal. Aqui, um livro que vende esta quantidade vira best seller. Qual o papel da escola/educação para sermos uma nação de leitores? Acha que esse quadro vai mudar um dia? A ditadura militar acabou com a escola brasileira qualitativamente. Quantitativamente, a escola brasileira não existia até então. Muito pouca população era atendida. Os governo democráticos continuaram negligenciando a educação, inclusive o supostamente socialista governo do PT, há 13 anos no poder sem nada oferecer à formação das crianças, até o contrário, e isso de tudo é o mais criminoso. Nas últimas décadas, a escola se expandiu cobrindo uma porcentagem populacional bastante mais alta, mas sem qualquer qualidade, sem professores bem formados e equipados; isso numa época em que as famílias também passaram a não poder cuidar da tarefa básica de formar intelectualmente seus filhos. O resultado está aí para qualquer um ver.

Não há opção, temos que investir em educação porque é o único caminho para a integração do País às redes globais de troca e comércio de maneira a expandirmos a economia e termos trabalho, emprego, uma vida decente, para todos. Se eu achar que o quadro não vai mudar, estarei afirmando que o Brasil cometerá suicídio como nação. Não deixe de ler História do futuro, de Míriam Leitão, sobre esse tema.

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Como em outras áreas, o meio dos livros vive de modismos. Consegue enxergar algum tipo de moda na escrita de autores ou em temas tratados pelo meio literário nacional, nos dias de hoje? Infelizmente, a única moda claramente identificável, e até certo ponto não importada, porque maior do que em qualquer outro país do mundo, é essa de youtubers. De amargar. Há uma onda de fantasia também.

Outro dia, você disse no facebook da Villas-Boas & Moss Agência Literária que a literatura brasileira está mudando, abarcando temas que não ousava tratar antes. Quais mudanças são estas? Tem algum exemplo? Represento autores que escrevem thrillers de espionagem internacional, por exemplo, como Igor Gielow e Vivianne Geber. Existe uma nova literatura judaica brasileira, com Ronaldo Wrobel, Adriana Armony e uma autora inédita, que ainda verei bem lançada por aqui, Paula Targo, aliás, já publicada na Alemanha _ fora os já conhecidos  Michel Laub e Cíntia Moscovich. Alguns escritores estão se aventurando em um tipo de romance histórico de caráter totalmente nacional, como Marina Carvalho, que está a escrever O amor nos tempos do ouro, passado no século XVIII, em Minas Gerais. A história brasileira da segunda metade do século XX está sendo muito mais explorada também, basta ver os extraordinários romances de Edney Silvestre e Míriam Leitão. Há grande produção da chamada chicklit brasileira, literatura feminina, que conversa espetacularmente com suas leitoras. Vendem muito, e isso é uma grande novidade, uma literatura comercial brasileira. Raphael Montes, depois de se lançar com thrillers psicológicos, nada comuns entre nós, escreveu um livro gótico como O vilarejo, pensando em alcançar o imenso público jovem masculino, que gosta desse tipo de fantasia, mas acabou consagrado pela crítica justamente pelos contos que compõem o volume. Tem você, Alexandre Staut, por exemplo, que escreveu memórias de viagem e de culinária fantásticas, um novo tipo de livro entre nós, com mais semelhança a Um ano na Provence do que a qualquer outro lançamento brasileiro.

É possível ver a capacidade de um autor se mover com liberdade e elegância na tessitura da linguagem desde um primeiro parágrafo. Não preciso ler mais do que duas páginas para saber se darei seguimento ou não à minha entrega a um texto”

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Lembro-me de ler um texto seu, na orelha do romance Chove sobre minha infância, do Miguel Sanches Neto, em que você fala que, ao começar a ler uma obra, logo percebe as suas qualidades. Como agente literária, deve receber muitas obras para avaliação. Como percebe o que tem qualidade literária, já nas primeiras linhas? É possível ver a capacidade de um autor se mover com liberdade e elegância na tessitura da linguagem desde um primeiro parágrafo. Não preciso ler mais do que duas páginas para saber se darei seguimento ou não à minha entrega a um texto.

Como é a vida de um agente literário, hoje? Em que se assemelha ao trabalho da Carmen Balcells, que teria inventado a profissão e que representou Clarice Lispector, Autran Dourado [hoje agenciado por você], Gabriel García Márquez? O livro tem algo de incompatível com as novas tecnologias. O livro demanda tempo e imersão. A única maneira de se conhecer o produto é dedicando a ele no mínimo algumas boas horas, se não dias. A outra maneira de conhecê-lo mas obviamente sem a mesma qualidade é ouvindo a narrativa e a crítica dela de uma pessoa que o tenha lido. Daí nunca acabarem as grandes feiras literárias de negócios. Por que estou dizendo isso? Porque a entrada do email e as possibilidades de transmissão imediata de um original literário conferiram ao trabalho editorial uma aceleração que é estranha ao livro. O negócio do livro cresceu muito, mas a qualidade do trabalho editorial teve fatalmente que piorar. Os editores têm que permanentemente destrinchar centenas de originais ao mesmo tempo para ver o que interessa ou não e acabam se pautando não na própria leitura, mas em sinais externos do que vai dar certo em termos de vendas: se o autor é conhecido, se tem plataforma de divulgação na internet; no caso do livro estrangeiro, se já foi vendido a outros países, quanto vendeu localmente, etc _ a medida de quanto a obra se presta ao marketing.

Em 1995, quando comecei a trabalhar com livro, ainda se usava o fax para transmitir informações. Lidávamos com fotocópias de textos de computador ou datilografados, havia autor louco que mandava seu único original, ou com volumes estrangeiros já publicados. Não se comprava livro na ‘proposal’ como se faz hoje (agora menos por causa da crise). Todas as decisões eram muito mais demoradas. A facilidade da contratação em função das tecnologias de transmissão é um dos fatores _ talvez não o principal, o maior é a concorrência pelo original _ de muitos editores terem comprado demasiadamente nos anos de euforia, de 2004 a 2014 mais ou menos, e hoje estarem com títulos suficientes para programar até 2019.

Estou dizendo que a essência do trabalho do agente é a mesma desde que surgiu essa figura no ambiente editorial profissional: identificar talentos, ser uma interlocutora primordial quanto a temas literários, às vezes também pessoais, encontrar a melhor casa para cada livro, em parte tirando do autor o peso das decisões de carreira, de maneira a ele poder se concentrar na criação obra. Defender os interesses do autor intransigentemente sem, é claro, fechar portas para ele ou para o próprio agente. Mas a tensão dos dias de hoje não se compara à da época de glória de Carmen Balcells. O que mudou foi menos a natureza do agenciamento do que o tamanho do negócio do livro, em função das novas tecnologias, e a pressão do sucesso comercial.

A tensão dos dias de hoje não se compara à da época de glória de Carmen Balcells. O que mudou foi menos a natureza do agenciamento do que o tamanho do negócio do livro, em função das novas tecnologias, e a pressão do sucesso comercial”

Carmen Balcells

O que está lendo ultimamente? Estou sempre lendo originais. Agora vou me dedicar a um livro de história sobre a Revolução Americana, mas escrito por um brasileiro de Minas Gerais, um físico chamado Marcel Novais. Li a introdução e vi que está muito bem escrito, me parece um livro que pode se encaixar bem nessa linha agora bastante popular de divulgação histórica. Sonho com o dia em que voltarei a ler livros editados. Mas às vezes me dou ao direito de reler de fio a pavio um livro pronto que lera capítulo a capítulo, com intervalos de tempo, com uma porção de falhas, que eu esperava viriam a ser sanadas pela mão do editor, mas sem  muita certeza. O último livro que me dei ao luxo de reler já publicado pela editora foi História do futuro, também porque o considero a leitura politicamente mais importante de ser feita neste momento.

Luciana

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Fotos: Capa de Meu pé de laranja lima; Luciana e seu fiel Nelson; Edney Silvestre; capa de História do futuro; Adriana Armony e Carmen Balcells/ Divulgação; banco de imagens e arquivo pessoal

 

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