Não têm nome as cores com que ouvimos falar da luz

Nenhuma cor volta a ser a mesma. Imagine

um brilho, uma brancura que não te cegue.

Algo além de um crepúsculo borgiano

que se esvai, como qualquer outro, em um dia de outono.

 

Meu daltonismo deriva da loucura

de cores imaginárias.  Conheço seus nomes

desde que era um menino, mas as cores

seguem-me indagando: será verde o verde;

vermelho o vermelho, azul o azul, amarelo o amarelo?

Qual será a verdadeira cor das coisas?

 

Felizmente, tu percebes não apenas com os olhos

enquanto  a luz em tuas mãos me fala

diluída na tarde única

sob o peso tão tênue de um arco-íris.

 

O cheiro da névoa é o cheiro do tempo

O mar a traz desde que acordo.

Eis o que não se vê e todos conhecem.

 

Em seu universo, não é tão difícil pressentir

proximidades de barcos e ou de baleias.

 

O cheiro da névoa é o cheiro do tempo.

Vai se submergindo em diminutas gotas

 

o batido oco de cada uma das coisas.

Pouco a pouco alcançou minha cabeça.

 

E envolto em sua nuvem de ecos

sondo a inexistência íntima:

 

toco a mesa das horas, a cadeira;

em seguida, a porta vencida dos anos.

 

E um silêncio de mergulhador sempre

me convence de ser recém-nascido.

 

Quando a cal da morte entalha todos os nomes da solidão

O que é mais real agora?

A mulher que recostada na areia

lê Marguerite Yourcenar e Bashô ou essa extensão diluída

entre meu coração e o universo?

 

O paradoxo é terminar vendo

o que nunca esteve onde o colocamos.

 

Se chamava…

 

Não sabes quantos outros mais a conheceram

e estendem de um a outro lado

a brevidade inconclusa

de um brilho opaco que se apaga.

 

Lembramos o que podemos.

O outro, as lágrimas dos espectadores,

o monumento vazio são os ritos

do orgulhoso ofício do inalcançável.

 

O que te comove não é isso

senão outra coisa, uma íntima hospitalidade

de convidar a olhar – como só ela sabia –

seu terrível segredo.

 

Receptiva e elementar, a água nunca faz diferença

Em outra manhã, a avó Ros

mostrou-lhe um beija-flor morto. Flutuava

em um balde como uma espuma solta.

 

“Não há outro pássaro igual”, te disse.

“Emprestaram-lhe para o voo e não querem devolvê-lo”

Havia diluviado durante a noite.

 

Entre relâmpagos e trovões, as sombras

se avolumaram sobre as paredes.

E arrebentaram os tetos. O mundo

do sonho havia retrocedido.

 

Toda a água que cai

nunca faz diferença.

Em sua transparente balança

cada um obtém seu autêntico peso.

 

Final de verão com uma gata entre os braços

Ainda se esparramam pelo pátio

as vozes das janelas altas.

Parece outro idioma sobrevivendo

ao vozerio da festa irrepetível.

 

Com o diário nas mãos, envelhece

tanta notícia imperiosa

nas espumantes poças d’água da tarde.

 

A gata baixa dos tetos.

Um elo perdido para uma arqueologia

da culpa e da piedade.

 

É curioso o que parece permanente:

como se não houvesse mundo antes nem depois.

 

Que fazer com ela? Sua estranha religião

a convenceu de que é você

quem traz a noite mais cedo

e também esse vento que a persegue.

 

E como faz para reconhecer-te de longe?

Em sua arte de equilibrista, aparece

em um portal das odiosas portas

e nem Stonehenge nem a Acrópole

poderiam ser-lhe menos familiares.

 

Os dois aprendem, um muito perto do outro,

a ler toda a antiguidade do frio

nas paredes de uma caverna.

 

México, julho de 1986

Perdoname, estaban muy ricas,

tan dulces y tan fria.;

                     William C. William

Este gosto na boca

entre ácido e algo doce de uma ameixa

não foi igual ao de há mais de três mil anos?

 

Um não sabe como explicar finalmente

o que resta do inchado arredondamento

com que preencheu sua mão

nem esse duro desejo de durar

que resiste na cópia de sua carne podre.

 

Uma ameixa roxa, quase negra

Não é capaz de conter o universo.

Não poderá fazer com que nada mude.

Esse gosto é uma contínua pausa

em que tropeçam a culpa e o perdão.

*

Osvaldo Picardo é professor de literatura na Universidade Nacional de Mar del Plata, onde nasceu (1955) e reside. Editor da revista La Pecera, foi diretor da Eudem Editora, é poeta, crítico, ensaísta e tradutor. Entre suas obras, destacam-se: Apenas en el mundo (1988), Dejar sin ventanas la verdad (1993), Quis, quid, ubi – Poemas de Quintiliano (1997),  Una complicidad que sobrevive (2001), Pasiones de la línea (Poemas de Nicolás de Cusa, 2008), Mar del Plata seguido de Otros Lugares y Viajes (2012)  e  21 gramos (2014). Organizou a coletânea Primer mapa de poesia argentina (2000) e traduziu em parceria com F. Scelzo e E. Moore The love poemas, de James Laughin (2001)

*

Tradução de Ronaldo Cagiano

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