* Por Claudia Nina *

 “Por dentro tinha o vazio ressoante de uma catedral.”

                                                             (Clarice Lispector em A maçã no escuro)

Menino tão quieto era aquele de quem quase não se ouvia a voz.

A vó andava preocupada:

– Ô, menino, fala com a gente!

E nada.

Ele resmungava palavras pela metade e ficava quieto de novo. Voltava para o quintal da casa, que era cheio de pedras – minúsculas pedras, pedras médias e algumas maiores, restos de demolição.

O menino não brincava como se brinca.  Ficava horas a fio no quintal sem bola nem água de mangueira. Gostava das pedras. Podia ficar lá tardes inteiras – enfileirando pedras, contando pedras, decorando com pedras as jardineiras.

Nunca jogava futebol na rua com os vizinhos. Não tinha amigos e não sabia jogar afinal. Mas ele não jogava pedras em cima de ninguém; apenas as colecionava, arrumava, criava pequenas formas no chão.

– Ô, menino, vem cá pra dentro ficar comigo – pedia a vó.

Ele ia, mas não dizia palavra. Depois voltava para o quintal.

Tinha dentro dele mistérios: quando aparecia, tudo em volta dele ficava parado. Quem estivesse ao lado também emudecia. O curioso era que ninguém percebia.

– Ô, menino, vem com a vó comer um caldo.

Ele ia, engolia o caldo sem dizer um olá. As visitas, quando havia, ficavam paradas olhando o menino parado. E tudo ao redor era um silêncio empedrado.

Quando ele ia para a escola, as pessoas se espantavam e, ao vê-lo, emudeciam. Perdiam as palavras e, ops, não havia mais o que dizer.

Viravam estátuas?

Quanto mais ficava isolado no quintal, mais crescia nele o poder: ele aparecia, e as palavras dos outros sumiam, empedravam? Tudo ao redor dele virava parede. Era um mágico e pequeno fazedor de pedras.

– Ô, menino, vem estudar – pedia a vó, já sem mais saber o que falar.

Ele ia, silencioso e devagar.

Chegava da escola e se escondia – adivinha? – entre as pedras no quintal.

A verdade secreta do menino era que ele tinha o dom de ouvir o silêncio das pedras.  Tinha-se a impressão de que, quanto mais o tempo passava, mais pedras surgiam naquele quintal…

– Ô, menino, vem me dar um beijo, que sua vó está indo embora.

Ele foi, silencioso e devagar.

Deu um beijo na avó e depois voltou para o quintal.

Mal percebeu o menino que aquele era o último chamado da avó, que, depois de muitos anos de vida, estava de partida. Cansou-se a velha senhora de tantas lutas e tanto silêncio – sim, o silêncio às vezes também cansa…

E o menino?

Por quanto tempo ficaria ali, de frente para aquela audiência de pedras que só crescia em quantidade?

Depois da partida de sua avó, não havia mais ninguém na família para chamá-lo – nem para comer, nem para estudar, nem para falar…

O que seria do pequeno fazedor de pedras, afinal?

Ninguém conseguia medir o tamanho do deserto que havia dentro dele.

Ninguém sabia nem adivinhava.

Seguiu sua rotina. Chegava da escola e voltava ao quintal. Havia muito trabalho ali. Enfileirava as pedras de variados tamanhos que recolhia dos cantos e as outras tantas que nasciam de suas mágicas mãos.

Embora inertes, as pedras tinham muita vida dentro delas, mas só o menino sabia disso. Eis o segredo. Ele conhecia a alma das pedras.  Umas pareciam já senhoras, eram grandes e sábias. Outras eram tão pequenas e frágeis, eram pedras infantis.

Aos poucos, juntou todas as pedras que via pela frente. Fez um círculo ao redor de si. Eram tantas as pedras que poderia construir com elas uma catedral – ele no meio. Pôs-se, então, a repetir o silêncio das pedras como uma oração.

Mal sabiam os outros, o menino sabia rezar.

E fez uma linda e silenciosa oração para a avó que partira.

O tempo passou. Cresceu homem com as pedras ao redor. De tanto viver em seu deserto-quintal, aprendeu a transformar pedras em arte. As pedras ganharam vida em suas mãos – já não eram mais pedras inertes; eram crianças, senhores e senhoras elegantes. Virou escultor o estranho menino, que soube escutar com cuidado o silêncio das coisas quietas.

Da linguagem de gente, ele pouco entendia. Mas de silêncio e de pedras sabia tudo quanto havia para saber. Seu quintal virou um lindo museu e muitas pessoas começaram a surgir de longe para “escutar” o silêncio de suas criações.

Em cada pedra-escultura, esconde-se um frase, um parágrafo, uma fala inteira que não se pode dizer em palavras; é que o silêncio das pedras se traduz de uma outra (mágica) forma.

Escutar silêncios é também a arte dos  fazedores de pedra.

*

Claudia Nina é escritora, autora de Paisagem de porcelana, entre outros

 

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