* Por Alexandre Willer *

Era um pais muito engraçado, não tinha fronteira, não tinha espaço. Ninguém sabia morar ali porque o país não era nação e o povo sem rumo vagava de um lado para outro sem saber ao certo o que faziam, onde iam ou porque estavam ali.

Não havia cidades, estados ou qualquer outra coisa, alguns lembravam de que isso existira um dia mas eram apenas o mais velhos, sobreviventes de tempos difíceis e, conforme morriam, com eles era enterrada essa ideia absurda de que, um dia, aquilo fora um país.

Ninguém acreditava muito nisso, principalmente os mais jovens, achavam que eram histórias senis contadas a beira do fogo para distrair crianças e pregar sustos mas, eventualmente, eles encontravam durante suas andanças, coisas que os idosos chamavam livros e que apenas estes sabiam interpretar. Lá, diziam eles, estavam as provas de que sim, um dia aquilo fora um país mas como apenas eles entendiam o que diziam os tais livros, julgavam que fosse coisa de velhos e não lhes davam atenção.

A vida do povo sem rumo era muito simples, eles simplesmente se fixavam num lugar até esgotar tudo que ele tivesse a oferecer movendo-se, em seguida, para outro que pudesse lhes fornecer sustento e assim por diante. Grupos errantes se cruzavam pelo país, às vezes pacificamente, às vezes nem tanto, principalmente quando grupos identificavam coisas que necessitavam ou cobiçavam, desde alimentos, roupas ou até mesmo pessoas e então, lutavam, muitas vezes até a morte ou submissão do grupo perdedor.

Os anciões lembravam de tempos em que tudo era fácil de conseguir, havia fartura e não era preciso brigar por nada, diziam aos seus que tudo se resolvia com um tipo de papel ou plástico que tinha valor e que podia ser trocado por comida, casa e até mesmo gente. Obviamente, ninguém acreditava, seguiam rindo e dizendo ser coisa de gente velha, contos para entreter as pessoas em noites mais frias e escuras.

O povo sem rumo às vezes encontrava prédios antigos, já meio combalidos e tomados por mato ou até mesmo florestas mas se recusavam a entrar e habitá-los, havia uma superstição comum a todos os grupos de que tais edifícios eram assombrados por fantasmas do tempo de antes, quando todos viviam numa coisa que alguns ainda chamavam de sociedade e que, segundo a mística dos grupos, fora a razão do povo ter ficado sem rumo e do país ter perdido seu nome.

O povo sem rumo seguia vários deuses, cada grupo na verdade possuía suas próprias divindades e não eram poucas as ocasiões em que grupos se digladiavam por conta de suas crenças. Os anciões diziam que também era assim antes e que muita guerra fora travada antes do país deixar de ser país, tudo por causa de deuses diferentes e lamentavam que o povo ainda brigasse por conta disso mas, nada podiam fazer, ninguém ouvia seus lamentos.

O povo sem rumo não tinha em seus grupos líderes, às vezes uma pessoa parecia assumir tal papel mas quase ninguém lhe dava atenção, agiam em bando, como algum tipo de consciência coletiva. Quando algum líder se destacava ou um novo grupo era criado como algum tipo de coletividade afinada com o comportamento de um líder, matava-se o líder pelo bem comum, era um consenso que lideranças eram ruins e que apenas o grupo podia tomar decisões por si e matar um líder era aceito sem reservas.

Os anciões diziam que isso também era devido ao que acontecera antes, nos tempos que ninguém mais se recordava exceto eles. Diziam que antes do povo ficar sem rumo e do país perder seu nome, houve uma grande luta, em todos os lugares do país sem nome, provocada por um líder que alguns chamavam de ‘O Capitão’ e que parecia ter exercido algum tipo de poder sobre muitos grupos.

Ninguém nem mesmo os anciões sabem ao certo o que aconteceu ao Capitão, uns dizem que morreu pelas mãos de seu grupo, outros que fugiu do país antes que ele perdesse seu nome levando toda sua família consigo, há quem diga que ele ainda vaga pelo país feito um messias pregando sobre tempos que jamais voltarão. Todos riam dessas histórias e pediam aos velhos que parassem de falar bobagens. Os anciões calavam e ficavam ensimesmados, uns choravam, diziam lamentar pelo que tinha acontecido com o povo e com o país cujo nome nem eles lembravam mais.

O povo sem rumo foi vivendo assim no país sem nome até o dia em que o último ancião morreu e com ele, a última lembrança dos tempos de antes. Ninguém chorou a morte do último ancião, ninguém se comoveu, ninguém deu atenção, era dos anciões morrer, não se esperava outra coisa deles além de histórias para entreter o grupo. Enterraram o ancião em um canto qualquer do país sem nome e seguiram sem rumo como sempre haviam feito.

Há uma lenda entretanto que sobreviveu e que alguns passaram adiante incorporando às crenças do povo sem rumo. Dizem que o último ancião, em seu leito de morte, balbuciou um nome que ninguém conhecia ou jamais ouvira mas que estranhamente soava familiar, feito algo que é sussurrado através de um sonho.

Ninguém sabia o que significava a palavra que o ancião proferira com seu último suspiro e, dizem alguns, que parecia sorrir quando disse com seu último fôlego a palavra ‘Brasil’.

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Alexandre Willer é autor do volume de contos Maré vazante e outras estórias e, atualmente, prepara seu segundo livro Nunca mais voltei (Editora Folhas de Relva), no prelo.

Participou das coletâneas Homossilábicas, Cem anos de Amor, Loucura e Morte e GOLPE: Antologia Manifesto, além de outros projetos e iniciativas literárias LGBTQ como Mix Literário. É cinéfilo, leitor compulsivo, amante de música e fotógrafo amador. Mantém um blog http://afternonsense.blogspot.com/?m=1

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Imagem: Cena do filme Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles, sobre outra de mesmo nome de José Saramago

 

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