* Por Davi Koteck * 

 1.

Hoje o dia começou estranho porque não dormi. Mais uma vez que atravesso a madrugada igual a quem assiste programas de auditório numa tarde cinza de domingo, de maneira que o tempo nessas horas só serve mesmo para passar. Engraçado isso de não dormir: o corpo nem sempre reage, o rosto incha, a cabeça arde até entrar em combustão, as veias latejam. Percebo partes de mim que, quando descanso, nem sei se existem. E, às vezes, dá vontade de rezar.

Não acredito em deus. Não tenho religião. Não penso em vida após a morte. Não tenho pretensão de reencarnar. Nunca fiz um crucifixo em torno do rosto ao passar em frente a uma igreja, nunca disse amém depois de ouvir o corpo de cristo e mastigar o gosto frígido de hóstia. Mesmo assim, me entrego de mãos espalmadas no quarto já nem tão escuro, sentindo por toda língua aquele amargo de uma manhã insone.

2.

Ontem à noite achei uma camiseta velha, daquelas que você usa por tempo suficiente até ficar guardada alguns meses e absorver bolinhas de naftalina e cheiro de armário. Vesti sem me importar com as crises de espirro e o incômodo provocado pela cápsula de poeira. Experimentar uma roupa velha é também um jeito de perceber mudanças. De ver qual ombro cresce mais, o diâmetro de cada bíceps esmagando a curvatura da manga, de se perceber diferente, um corpo diferente. De sentir o tecido colado à barriga, a barriga colada a tudo.

Antes de uma noite de insônia você consegue prever uma noite de insônia. Você envelhece de um jeito diferente que suas roupas, você cresce ao invés de encolher, você perde o cheiro e começar a rezar. Você se enxerga em outra pessoa no espelho, como se vestir aquela camiseta fizesse voltar a ser o mesmo de antes.

3.

Um amigo coleciona manequins dentro de casa. Ele encomenda através de um CNPJ fantasma de uma fábrica chamada Paraíso dos manequins. Escolhe uma roupa a cada dia, intercala de acordo com o oposto da temperatura. Assume o controle, brinca de deus com os bonecos grandes. E não é mais ou menos isso que fazemos quando ignoramos a morte?

4.

Esse mesmo amigo liga no início da manhã perguntando se consegui dormir, se li a notícia que ele mandou sobre um possível colapso entre a Terra e um meteoro daqui a uns anos, e se ainda penso antes de dormir, ao acordar, enquanto não durmo, na Luiza. Porque a Luiza tem isso de não deixar que a gente pense em outra coisa. De olhar pra uma mancha vermelha e quase apagada no teto e relacionar com as unhas mal feitas, com o esmalte descascado daqueles dedos firmes e desproporcionais. De se pegar ajoelhado como nunca esteve antes, falando baixinho, quase em tom de confissão: cadê você, cadê você, cadê você.

5.

O apartamento da Luiza era um loft revitalizado no Centro de Porto Alegre, numa zona onde hoje é ultramovimentada, só que naquela época ninguém andava lá. Quando eu a visitava, tinha que ir cedo, e sempre ou quase sempre acabava por dormir ali, num colchão duro, encostado na janela guilhotina da sala. O apartamento tinha cheiro de cinzeiro e goiaba madura, que era mais ou menos o cheiro da Luiza também. Em todas às vezes ela abria a porta com um cigarro apagado na boca, e eu chegava com um aceso estalando a brasa no dela, como se os cigarros se beijassem.

Antes de dormir, ela empurrava a janela o mais forte possível e passava a mão nos meus cabelos até que eu entrasse num estado anestésico. Aquilo fazia um pouco de cócegas e contrastava com o barulho do vidro quase quebrando. Ficar lá era assim: fechar os olhos como se flutuasse, mas sempre correndo o risco da queda.

6.

Meu amigo era amigo da Luiza também. A amizade que eles cultivavam era diferente da minha com ela e da minha com ele. Ele nos apresentou durante um desses jantares com conhecidos de conhecidos que eu não queria ir e depois fiquei sabendo que ela também não. Terminamos a noite, os três, no loft dela, contando as luzes acesas nos apartamentos da frente e sempre perdendo a conta. Isso que mais tarde se tornou um hábito entre nós: quase todas as sextas, sábados, segundas e quintas procuramos as luzes da cidade, mesmo nos dias em que o único apartamento acordado era o que estávamos.

7.

Depois, passamos a frequentar religiosamente o boteco no térreo do prédio em que Luiza morava. Sentávamos na mesa de plástico dos fundos, nas costas da televisão de tubo, perto do cheiro de fritura, com as cadeiras sempre na mesma ordem: eu, ele, ela. Nos encontrávamos depois do trabalho, durante o expediente, e se o bar estivesse aberto, antes de ir trabalhar.

Foi ali mesmo que meu amigo falou, depois de uns goles amargos, que mais fácil seria se tivéssemos controle, mas o controle verdadeiro e não esse efeito pastilha-embaixo-da-língua, se todo mundo não vivesse como numa grande pista de patinação no meio do shopping. Se você não pensasse: freio, e vida respondesse: queda. Se não fôssemos manequins recheados de carne, sangue, osso. E então a Luiza riu, e riu até ficar com o rosto vermelho, da mesma cor que suas unhas costumavam ser.

8.

Vou ao mesmo boteco sozinho. Sento numa mesa diferente, com um cigarro apagado na boca, e tudo parece diferente. Mudo de lugar, arrasto a cadeira até me sentir confortável, até meu movimento se confundir entre o volume da televisão e a falta habitual de clientela. Eu não precisaria estar de novo aqui. Meu amigo não vem mais aqui. Luiza não virá mais também. E, no entanto, mantenho viva nossa conta em conjunto. Anoto garrafas de cerveja para três, bebo garrafas de cerveja por três. E se alguém perguntar se as cadeiras estão vagas, vou dizer que foram ao banheiro. Que é outro jeito de dizer que tudo está cada vez mais estranho. E também que a vida esqueceu que é preciso ir com calma nas mudanças, que nas mudanças a gente sente tudo um caralho de vezes mais.

9.

Na primeira vez em que vi os dois se beijando tocava Vicious, do Lou Reed, com o grave estourado no rádio da sala. Na dança, a Luiza pilotava meu amigo da mesma maneira que alguém nervoso conduz um cigarro. Fiquei parado em frente à janela guilhotina do apartamento, procurando as luzes acesas. Pelo reflexo, o olhar castanho dela procurava junto comigo.

10.

Nas poucas vezes que foi em minha casa, ela não ficou mais do que dez minutos, enquanto eu buscava carteira ou roupas para o dia seguinte. Teve uma vez em que chegamos correndo, encharcados. Ela ficou sozinha no meu quarto durante meu banho. Quando saí, Luiza vestia apenas minha camiseta de dormir. O barulho da chuva se aproximava como se não houvesse mais paredes. Ela tirou a camiseta em silêncio, dobrou em cima da cama e pôs a roupa de antes.

11.

Saio do boteco em direção à escadaria e subo ao sexto andar, onde Luiza morava. O porteiro me conhece e demonstra não estranhar que eu apareça aqui de novo. Um cheiro da noite invade o prédio pelas frestas da basculante; mesmo que seja verão, há sempre um vento por aí. A cada lance de escada meu corpo desenvolve uma estranheza com o ambiente, de modo que me sinto em território inexplorado. Em frente ao apartamento ajusto o cigarro na boca e canto baixinho: oh baby you’re so vicious, when i watch you come, i just want to run far away. Na hora de acender, acaba o fluído, o isqueiro falha. Minha voz desaparece.

12.

No sonho de ontem andávamos de carro. Meu amigo no banco traseiro, com a cabeça centralizada entre nós dois. Eu no passageiro segurava um cigarro no canto da boca e Luiza dirigia de olhos fechados, usando fones de ouvido que vazavam uma música agitada. Acordei com a certeza de que alguém me ligava, mas o telefone não tinha bateria.

13.

Luiza costumava dizer que carros são mais seguros quando estacionados, mas não é pra isso que eles são feitos.

14.

Meu amigo tem um manequim novo. Decidiu que seria mulher, comprou peruca cor de madeira e um cachecol amarelo. Ele deixa o boneco no canto da sala, perto da janela de vidro duplo, que é para abafar os ruídos, diz com o olho tremendo. É a primeira vez que vou ao apartamento dele. Tem cheiro de caixa de papelão quando abre. E é um apartamento mudo, um lugar que você não imagina um jantar social ou música de fundo.

As luzes de agora são míopes, e a fervura do conhaque se espalha pelo meu corpo. Apenas eu, meu amigo e o manequim. A janela de vidro duplo não tem vista. Abro uma brecha e deixo o barulho da rua entrar, só que nenhum carro passa. Penso que é uma janela fumável, portanto. Meu amigo não fuma, mas pergunta se tenho um cigarro. E eu que parei de fumar, tenho. O problema de sair de casa é que dá vontade de beber, e aí dá vontade de fumar e, quando eu fumo, eu sempre acabo pensando na Luiza.

15.

Ele se inclina com o peito beirando a superfície do vidro. Ficamos na mesma posição do meu último sonho, só que com o manequim no lugar de Luiza. Meu amigo pede um carro de aplicativo endereçado à minha casa. O motorista durante a viagem fala sobre balada segura, bebida e direção, sobre os riscos que a gente corre só para chegar mais rápido, pagar menos, por facilidade, o tipo de coisa que parece barata, mas no fim pode e vai ter um preço maior do que podemos suportar.

A cadeira giratória do computador é combustível para retardar o efeito da bebedeira. Meio tonto e com um olho fechado, atualizo a caixa de e-mails, mesmo sabendo que não há novas mensagens. Procuro as mais antigas, marcadas em favoritas, e desço o mouse até o assunto: dont be sad i know you will

Esses dias reprisou aquele filme argentino que tu gosta. Aquele com os dois esquisitinhos em Buenos Aires, o cara total freak com fobia de cidade, e a guria decoradora de vitrines. Bem no início, nos primeiros quinze minutos, aparece um cachorro suicida. Lembra disso? Era o bicho de estimação duma puta. Ele ficava preso na sacadinha do apartamento. E aí se atira e cai no meio dos dois. Aquilo tudo só pra dizer como eles tavam inseridos em Buenos Aires, mesmo perdidos ou sendo peças avulsas nesse quebra cabeças que é viver em civilização.

Preso numa sacadinha de merda.

E não é mais ou menos isso que acontece com a gente? Me lembrou nós três, antes e depois daquela janta em que nos conhecemos. Sei lá. Pode ser que as luzes nunca se apaguem.

Semana que vem a gente se acha de novo.

bj

Lu.

16.

Ser um procedimento seguro e econômico é o principal motivo para que escolham cremar o morto. Os outros são: não agredir o ambiente, reduzir a superlotação dos cemitérios, ser mais prático do que um enterro.

17.

A justificativa que a família da Luiza usou foi que sobrou pouca coisa do corpo, bem assim: pouca coisa do que se pudesse aproveitar para um enterro digno, para um funeral com uma janelinha no caixão mostrando apenas o rosto, mas o rosto não era mais um rosto, eles disseram.

18.

Há uma semana meu amigo parou de ligar e mandar mensagens.

19.

Há uma semana não fumo. Também deixei de rezar.

20.

No dia do acidente eu fui sozinho pra casa da Luiza e ela não fechou a janela antes de deitar. Dormimos com as luzes acesas, no mesmo colchão, com nossos pés encostados, como se um cigarro acendesse o outro.

*

Davi Koteck nasceu em Porto Alegre (RS) em 1995. Publicou o livro O que acontece no escuro (Editora Taverna), e participou da antologia Qualquer ontem (Editora Bestiário). Tem contos e poemas publicados na São Paulo Review, Ruído Manifesto, Revista Travessa em Três Tempos, e outros.

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