Por Geraldo Lavigne de Lemos *

2014 estava perto de acabar quando Joaquim Souza Jr., professor de física, entrou em contato comigo interessado em ver um poema meu levado a público em 2008 e, desde então, arquivado. O ‘poema sobreposto’ que ele buscava podia ser lido de três maneiras distintas, pois estava impresso repartido: uma parte em papel opaco e outra em outra papel translúcido. Em cada folha se lia um poema, surgindo um terceiro ao deitar o papel translúcido sobre o opaco – momento em que os textos se misturavam. Era um típico poema concreto.

Dias depois, Joaquim me enviou o resultado da aplicação experimental de um fenômeno ótico à ideia do poema. Ele substituiu o modo de execução, antes baseado no tipo de papel, para, agora, fundamentá-lo na utilização das cores primárias. As palavras de cada poema isolado foram tingidas de uma cor específica e as palavras comuns permaneceram pretas. A partir disso, e com o auxílio de filtros de luz (aquelas gelatinas de coloração das luzes teatrais), foi possível impedir a visibilidade de alguns trechos do poema. Neste caso, a questão fenomenológica introduziu a ciência naquele poema concreto.

O resultado foi estonteante. Lancei-me imediatamente sobre a criação de mais poemas, desta vez pensados para aquela finalidade. Reparti palavras, cruzei sentidos e reestruturei a forma. Assim aconteceram os ‘poemas furta-cores’. A flexibilidade poética – uma característica primaz – permite que métodos inusitados participem de sua construção. Muitos artistas manejaram os conhecimentos ora apontados e, por isto, afirmo, as premissas deste projeto foram postas há muito tempo.

Francesco Rugi e Silvia Quintanilla lançaram um trabalho coletivo de arte e design situado em Milão e denominado Carnovsky lastreado no uso do RGB – as cores primárias, vermelho, verde e azul. Em vez de textos, são imagens imbricadas. É uma belíssima experiência que pode ser vivenciada também pela internet. Outrossim, a capa do livro de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, publicado pela editora Biblioteca Azul, em 2014, emprega o mesmo efeito na capa, porém com texto. Uma luva de acetato serve como filtro de luz e modifica o aspecto visual da capa. Um trabalho admirável.

Na relação entre ciência e literatura, cumpre ressaltar os poemas de Augusto dos Anjos. Os versos revelam em seu conteúdo um poeta ligado à ciência e à filosofia de sua época. Embora incomum, esta trama encontra antecessor ainda antes do nascimento de Cristo. Lucrécio registrou em poesia a assimilação de aspectos filosóficos defendidos por Epicuro.

Regressando para a literatura nacional, destaco a relevância dos irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos. Eles promoveram, sem dúvida, a renovação da poesia em solo pátrio, especialmente em termos concretistas. Inclusive, a poesia cromática de Augusto de Campos lavrada em 1953 sob o título de Poetamenos tem, com a devida licença, semelhanças com os ‘poemas furta-cores’. A qualidade poética igualmente se apresenta na verve de Haroldo de Campos, além da tradução de autores deveras importantes para o caso em tela. Foi dele a tradução de Um lance de dados (Un coup de dés), de Stéphane Mallarmé, que inaugurou a poesia tipográfica.

Longe de tentar assumir o vulto dos autores aqui citados, este é apenas um projeto que se põe. Alguns poemas são de dupla leitura; enquanto outros, de tripla. Os primeiros, portanto, exibem letras pretas e letras com uma cor primária. Os demais somam uma cor primária extra. Vejamos o poema “anverso”, originalmente escrito “comodidade não interessa / alienação sepulta jovens e velhos // quando o aprendizado anoitecer / os argumentos da submissão, / construiremos”. A leitura integral será a mesma acima, como se não existissem letras vermelhas. Já a leitura com o filtro revelará o poema “verso”, “como idade não interessa / alienação sepulta jovens e velhos // quando o aprendiz do ano tecer / os argumentos da submissão, / ruiremos”.

Há um vídeo de apresentação do projeto postado no YouTube. Ele será encontrado como resultado de busca do termo ‘poemas furta-cores’. Encerro estas últimas palavras com a esperança de que estes poemas provoquem no leitor o entusiasmo que senti.

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Geraldo Lavigne de Lemos é escritor, membro da Academia de Letras de Ilhéus (BA), autor dos livros À espera do verão (2011), amenidades (2014) e alguma sinceridade (2014), todos da editora Mondrongo