Por Eduardo Sabino *

Stoner, de John Williams (Rádio Londres, 2015), apresenta um personagem do qual não parece haver muita coisa a ser dita. Um jovem do interior ingressa na universidade com o intuito de aprender técnicas agrônomas e acaba se tornando professor de literatura. A decisão é tomada ainda no capítulo inicial e o livro será a descrição de sua trajetória no campus. As primeiras linhas soam como um alerta e descrevem a vida do personagem de forma fria, distante e desinteressada.

William Stoner entrou na Universidade de Mossouri como calouro no ano de 1910 com a idade de 19 anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma universidade, onde lecionou até a morte, em 1956. Nunca subiu na carreira acima da posição de professor assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade um manuscrito medieval em sua memória (…) Pode acontecer que um estudante, ao deparar com o nome, se pergunte distraidamente quem ele era, mas sua curiosidade raramente vai além de uma pergunta ocasional.

O personagem atravessou a vida sem alarde, discreto feito uma sombra, e logo se tornou um nome vazio, que não diz nada a ninguém. Já sabemos, desde o início. O que esperar, então? No caso de Stoner, um romance verdadeiro e comovente. Se não uma obra-prima, algo muito próximo.

Entre os pontos cronológicos anunciados de forma quase jornalística na abertura do livro, existe uma vida, afinal de contas. A trajetória de um homem comum, mas com as experiências e mistérios de uma vida real. E na ficção, lembra-nos James Wood, o real é sempre uma questão de fé. A força de Stoner está em nunca deixar que percamos essa fé. Na construção fluente dos diálogos, na composição dos personagens, sempre complexos e sugestivos, no desenrolar dos fatos e no modo como os detalhes da narrativa se intrincam, com elegância e artifício, não há margem para o inverossímil.

Quem é Stoner? O que significou sua vida? O romance promete revelar, ao menos dar-nos pistas, e vamos entendendo o personagem e a amplitude de sua realidade aos poucos, no compasso de sua jornada rumo ao autoconhecimento. Vemos os erros de Stoner, as consequências, ora de sua teimosia, ora de sua passividade, mas é difícil julgá-lo e não compreendê-lo. A narrativa nos coloca bem próximos dele. Entramos em sua mente e vivemos suas epifanias, ao mesmo tempo em que os outros são vistos de fora, pelo olhar de Stoner. Ainda que não seja uma narrativa em primeira pessoa, quase não existe ação sem Stoner por perto, no foco da cena. A reação das pessoas, uma leve mudança na expressão facial, será sempre um gesto aos olhos de Stoner, e tendemos a acompanhar suas reações – ou a falta delas – como fiéis escudeiros.

Os outros personagens vemos com menos profundidade, mas nunca superficialmente. Dois existem sobretudo para gerar os grandes conflitos do livro. O professor Lomax e Edith, mulher de Stoner. Lomax tem uma divergência com Stoner em relação à capacidade intelectual de um aluno, seu protegido, a quem Stoner reprova. Lomax vira um inimigo desde então, influenciando a carreira e momentos decisivos da vida do colega. Edith desenvolve um comportamento frio e artificial após o casamento com Stoner, criando uma barreira entre ele e sua filha Grace quando percebe o amor que nutrem um pelo outro. Edith e Lomax parecem ter uma amargura de causas mais remotas, apenas sugeridas, e contemplam o mundo com isolamento e frieza.

Há também personagens como Katherine Driscoll, professora com quem Stoner tem um caso, e Gordon Finch, seu velho amigo da universidade, que equilibram a balança afetiva de Stoner. Curioso notar a habilidade da narrativa em compor a natureza de cada relação. Há todo um jogo corporal sofisticado, de expressões faciais e reações físicas, que demarcam ou inviabilizam a comunicação dos personagens. Percebemos nesses detalhes a resposta de Stoner a cada situação. Com Gordon, a cumplicidade (quebrando sempre as tentativas de ambos de manterem a formalidade nos encontros acadêmicos); com Edith, a indiferença; com Grace, a frustração e o silêncio; Com Katherine, o conhecimento e a paixão; com Lomax, a tensão e o constrangimento.

Boa parte do livro transcorre na universidade. Articulando a vida acadêmica e a vida pessoal de Stoner ao pano de fundo dos Estados Unidos na primeira metade do século XX, John Willians aborda a vida no campus sem jamais limitar-se ao que ela tem de mais banal.

O foco está mesmo na dinâmica entre os personagens: as alianças e ataques, os desdobramentos, às vezes extremos, dos pequenos gestos e atitudes no relacionamento entre eles.  Mais do que espectadores de um cenário acadêmico fechado, com seus fatos rotineiros e figuras típicas, temos um ponto de vista privilegiado sobre as relações humanas e o mundo. Pelos olhos de Stoner, avançamos em uma vida ficcional entre a descoberta e o automatismo, a aceitação e o conflito, o estranhamento e o tédio.

O estranhamento, em especial, tão marcante no caráter de Stoner, talvez seja a palavra-chave da beleza do texto.  Stoner não entende bem os acontecimentos importantes de sua vida. A ausência das palavras, a falta de clareza altera sua percepção de tempo e espaço, levando-o a processar o baque da mudança através de experiências sensorias.  É assim, por exemplo, quando Archer Sloane, velho mestre da Universidade de Mossouri, abre os olhos do ainda jovem Stoner:

“Mas você não entendeu, Sr Stoner?, perguntou Sloane. Você ainda não entendeu mesmo? Você vai ser professor.”

De repente Sloane pareceu muito distante, e era como se as paredes do escritório tivessem recuado. Stoner teve a sensação de estar em pleno ar, e ouviu uma voz perguntar: “O senhor tem certeza?”

“Tenho”, respondeu Sloane suavemente.

“Como o senhor sabe? Como você pode ter certeza?”

“É amor”, disse Sloane animado. “Você se apaixonou. É só isso.”

Só isso. Percebeu que assentiu para Sloane falando algumas palavras sem sentido. Depois ele se viu saindo do escritório. Seus lábios estavam formigando e as pontas dos dedos estavam dormentes; ele andava feito um sonâmbulo, embora estivesse intensamente consciente do que o cercava. Roçou nas paredes de madeira polidas do corredor, e achou que conseguia sentir o calor e a idade da madeira.; desceu lentamente as escadas e se maravilhou com o mármore frio e estriado que parecia deslizar sob seus pés. Nas salas do andar de baixo, as vozes dos estudantes tornaram-se distintas e individuais, em vez de um murmúrio abafado, e seus rostos, que agora estavam próximos, pareciam desconhecidos e familiares ao mesmo tempo. Saiu do Jesse Hall para a luz da manhã, e teve a impressão que o cinza não oprimia mais o campus, orientava seus olhos para fora e para cima em direção ao céu, quase indicando uma possibilidade para a qual não tinha nome.

Com essa sensibilidade aflorada, Stoner embarca em outras fases marcantes de sua vida: a chegada da velhice, a descoberta do amor, as grandes perdas e a experiência da morte. São passagens de beleza e transcendência, que surpreendem por reter com precisão a desorientação do humano quando lançado, na condição de estrangeiro, no centro dos mistérios da existência. Nesses momentos Stoner atinge o patamar das grandes obras de arte, verbalizando o que, de outra maneira, não poderia ser dito.

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Stoner, de John Williams (Rádio Londres)

Avaliação: pena-01pena-01 [muito bom]

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Eduardo Sabino é escritor, editor e jornalista, autor do livro Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século, 2009).  Mantém o blog “Solo Insólito” no endereço eduardosabino.com

 

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