Por Raimundo Neto *

Sylvia Plath sempre foi um mistério para mim. Desde as primeiras linhas de Redoma de vidro até os últimos trechos de histórias catadas e contadas pela boca e dedos de bons leitores. Todas as palavras dela, fossem em romance ou poesia, traziam-me de um lugar estranho e me punham em outro lugar fechado, escuro, porém agigantado e libertador, além de úmido. À época, a primeira impressão que tive, após algumas leituras, foi de que a vida de Sylvia está em seus escritos. Impossível, depois de primeiras e últimas linhas, não procurar tudo o que foi vivido e tudo o que morreu dentro dela em seus poemas. Basta ler um pouco sobre Sylvia (inclusive livros e artigos que estudam toda a poética do suicídio da escritora) para compreender, minimamente, o que foi a sua vida-obra.

Em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, a companhia Lusco-Fusco, leva ao palco os últimos dias de vida da poeta Sylvia Plath (interpretada pela atriz Djin Sganzerla), antes de cometer o suicídio, e sua relação com seu marido-censor-editor Ted Hughes (vivido por André Guerreiro Lopes, que é diretor e cenógrafo da peça).

O primeiro mergulho

No início, a voz de Sylvia e Ted anuncia uma relação pacífica e sólida: os afagos cotidianos, uma casa cuidada, uma mulher domesticada e solta dentro de carinhos e crianças, e todas as palavras ainda em gotas.

Uma casa composta de olhos da plateia, chão líquido e espelho d’água. Objetos de uma infância que chora a falta do pai estão suspensos e congelados. Um relógio preso ao gelo do tempo, que escorre, goteja. Sylvia tem pouco tempo para libertar-se de um papel que a aprisiona, até entregar-se às palavras que avançam das vísceras para a superfície. Sylvia está prestes a renascer. Mas antes precisa morrer. Enquanto as memórias suspensas no teto de Sylvia derretem, a relação avança, desgasta-se, submerge, a casa afunda.

A atriz está pronta, dentro de Sylvia. Os olhos cheios de palavras, a voz inundada também; firme e sofrida. A beleza do ator entrega a certeza de quem sabe como derrotar uma mulher completamente apaixonada e visceralmente entregue.

A casa é feita de muitas faltas. A luz é apenas a impressão de que há salvação para o que é ausente, a ilusão de que o amor resiste a tudo. As luzes apagam e fantasmas desmontam a casa e afundam-na cada vez mais. A porta, lugar onde nada passa, na casa submersa, já está aberta. Tudo é substituto.

Ted segura o início dos derramamentos com postura de desta-água-não-beberei. E, assim como na vida de Sylvia, deixa a mulher, que rasgava o amor em palavras sangradas, liquefazer-se e inundar-se até o fim.

Djin Sganzerla, a atriz, é a dor em pessoa. Molhada de lágrima e palavra. Deve ser difícil incorporar a dança afogada de uma poetisa que faz ondular o piso de uma casa que goteja tempo e infância. Deve ser difícil ter todas as palavras vivas que matariam uma mulher oprimida por compromissos de um casamento cansado, de uma cobrança maldita para ser tudo, menos mulher e livre. E André Guerreiro Lopes é um Ted altivo e debochado; os passos contados para não afundar. Como deve ser difícil ser Sylvia e Ted, ser outro durante sessenta minutos e não afundar a cada poesia dita como se fosse a última.

Busquei enxergar cenas inteiras no reflexo da água acumulada. Um mundo paralelo abaixo, a casa submersa, o mundo perdido de uma Sylvia que a cada gota, morria, e, no entanto, vivia mais. Plath adquire o peso de uma dor insuportável com o escorrer do tempo, por isso afunda, e leva a casa consigo.

O segundo mergulho

Sylvia começa afogando-se. Antes, Ted não a deixa despencar. Mas algo acontece e Plath começa a afundar-se de vez. Talvez uma lembrança; talvez a imponência da masculinidade altiva do homem que a segura; talvez as sombras que consomem a sanidade nascida de uma falta primeira (a morte do pai); talvez a morte do pai.

As abelhas existem apenas no som, e na lembrança; vão e voltam, abrem e fecham a encenação. É através das lembranças choradas de Sylvia que as paredes da casa se desfazem, e a porta se abre diante da plateia. É quando Sylvia lamenta a falta do pai, é um enxame de faltas da infância que a angustia.

O desespero é uma oração, e Sylvia não sabe recitar para outro santo e alimentar outro altar que não a morte sagrada que ofendeu desde sempre seu futuro. Os ditos ininteligíveis das abelhas são gritos tristes do passado, súplicas que atormentam; o estalar das teclas da máquina de datilografar fazem-se gritos deprimidos do presente; e é ali, na cabeça de Sylvia, onde uma escuridão tempestuosa avança destemida, é ali onde futuro parece não existir. Todos aqueles sons? São “o som da loucura”.

A mesa do jantar é um precipício, quase o fim; Ted e Sylvia revezam-se na máquina de escrever; Sylvia repete o seu fim em cada palavra, enquanto Ted inicia o rompimento desde o primeiro poema.

Sylvia parece líquida o tempo inteiro; como pode uma força tremenda e arrebatadora derramar-se tanto e inundar apenas a si própria?

A mesa de jantar é um campo minado de xícaras e pratos limpos cheios de incertezas; Ted lança uma colher gigante para o adiante e engole o dito e o não-dito. O dia a dia alimentado por um homem compromissado que ingere o obscuro da mulher-dona-de-casa-mãe com quem convive.

O lar de Sylvia é um continente devastado; o amor tornou-se uma ilha; os furacões avançam e Sylvia tenta esconder-se na infância. Não há abrigo no passado que arrancou pedaços; Sylvia volta ao presente e vê-se afundando, cotidianamente. As palavras da mulher, à deriva, procuram refúgio no corpo de sentidos de Ted, que vaga seguro em suas próprias certezas másculas e, muitas vezes, vaidosas.

 

O terceiro mergulho

Os diálogos são os poemas de Sylvia e Ted desentendendo-se ao longo das cenas, da vida; a atriz embarga a voz, e os desentendimentos entre Sylvia e Ted enchem-lhe os pulmões; o ator mantém-se firme, implacável, não desmorona quando as tempestades que se formaram em tempos outros da vida de Sylvia buscam consolo no desabrigo que ela mesma não suporta em si.

O tempo, que cabe entre as linhas que recebem a impressão do mundo fraturado de Sylvia, escorre do teto na casa que se desfaz. E entre cada letra impressa, cada linha, cada poema, o infinito. E a morte não é o fim começando todo dia?

Bravamente, Sylvia continua a desmoronar, pedaços e pedaços de sentidos caindo lentos no mar que se agita aos poucos. Mas é a palavra que adia o fim. A poesia é instrumento de salvação ainda assim. Como aquilo que salva torna-se o mesmo que aniquila?

A presença de Ted a consome. As palavras de Ted e Sylvia debatem-se, mas não se cruzam; estão em lados opostos de uma relação cansada; apenas um deles entende os mínimos detalhes de uma relação descuidada, um amor que se descobriu maluco.

A casa aprofunda-se nos rastros de luz, sombras das palavras de Plath investem sobre o passado para descobrir o futuro de si, o futuro do casamento, sobre o que é ser poeta quando só resta ser mãe e esposa; à medida que a casa abisma-se nas profundezas do declínio, e com ela a família, Plath-escritora emerge; as palavras cruas da poeta fazem Sylvia, sempre visceral, renascer.

E dezenas de palavras de um poema derramam sentidos que levam Sylvia a dançar com uma falta. E antes de cair, pela primeira vez, Sylvia dança com uma ausência. Um homem bem passado, botão e tecido branco, faltante; a presença do pai; Sylvia dança, agarra-se à falta, gira o corpo e a dor de não sentir o amor de outra forma; rodopia dentro da música.

Sylvia deixa respingar na plateia as gotas de si; Sylvia quer esvaziar-se inteira, inundar os olhos que assistem. Sylvia dança, quer vencer a própria desistência. Mas entrega-se à derrota insuportável de não saber ser outra, e ainda assim Sylvia só cresce: maior, o mar de si revolto ao alongar-se e chocar-se nos rochedos tremendos do amor de seu o homem insolúvel.

Sylvia perde a guerra para a falta de tudo.

O último mergulho

As críticas de Ted ecoam pela casa e emudecem a voz de Sylvia, o farfalhar de papéis destruídos com a disputa de dedos opressores ensurdece a plateia. Os barulhos das partidas de Ted calam a poetisa, a mulher que escreve a própria vida, (mudez e vazios), e entende a presença grotesca e querida do homem, (mudez e vazios), Sylvia tenta dizer mais, falar sobre (mudez e vazios); o homem lindo e aniquilante que revira sua escrita ao avesso, o homem que profere (mudez e vazios), que vê o amor como um porco e o que sobra da porcaria quando não é mais um porco.

E os dois seguem a luz que aponta o fim, faltantes e completamente inundados.

Antes de cair, pela última vez, Sylvia dança com uma falta.

Então se dissolve,

E nós saímos submersos.

*

Raimundo Neto é escritor. Colabora com a São Paulo Review

Serviço: Em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso 

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