Descrevo os Yanomami como “o povo feroz” pois é a única expressão que pode representá-los com precisão. É a imagem que eles têm de si mesmos e é assim que gostariam de ser lembrados pelos outros povos.” Napoleon A. Chagnon, 1968

Por Davi Kopenawa * 

Durante minhas viagens às distantes terras dos brancos, ouvi alguns deles declararem que nós, Yanomami, gostamos de guerra e passamos nosso tempo flechando uns aos outros. Porém os que dizem essas coisas não conhecem nada de nós e suas palavras só podem ser equivocadas ou mentirosas. É verdade, sim, que nossos antigos guerreavam, como os antigos dos brancos faziam naqueles tempos. Mas os deles eram muito mais perigosos e ferozes do que os nossos. Nós nunca nos matamos sem medida, como eles fizeram. Não temos bombas que queimam todas as casas e seus moradores junto! Quando, às vezes, nossos antigos queriam flechar seus inimigos, as coisas eram muito diferentes. Procuravam atingir sobretudo os guerreiros que já tinham matado seus parentes e que por isso chamavam de õnokaerima th ë pë. Tomados pela raiva do luto de seus mortos, eles conduziam ataques até conseguir se vingar desse modo. Esse é o nosso costume. Só buscamos vingança quando um dos nossos morre por flecha ou zarabatana de feitiçaria. Se guerreiros de outra aldeia matam um dos nossos, os filhos, irmãos, cunhados e genros do defunto vão atrás de suas pegadas para flechá-los de volta. Se feiticeiros inimigos oka destroem um de nossos grandes homens, acontece o mesmo. Mas não ficamos nos flechando sem parar, por nada! Se fosse o caso, eu diria, pois gosto das palavras de verdade. Alguns brancos chegaram até a afirmar que somos tão hostis entre nós que não podem nos deixar viver juntos na mesma terra! Mais outra grande mentira! Nossos ancestrais viviam na mesma floresta havia muito tempo, muito antes de ouvirem falar dos brancos. Essa gente mentirosa acredita mesmo que somos tão perigosos quanto os soldados dos brancos em suas guerras? Não. Só quer espalhar más palavras sobre nós porque precisa da ajuda delas para conseguir se apoderar de nossa terra. Mas não é pela beleza de suas árvores, animais e peixes que os brancos a desejam. Não. Eles não têm mais amizade pela floresta do que pelos seres que a habitam. O que querem mesmo é derrubá-la, para engordar seu gado e arrancar tudo o que podem tirar do seu chão.

A valentia guerreira, que chamamos waith iri, veio a existir há muito tempo. Surgiu na floresta, bem antes de os brancos nos conhecerem, e não foi por acaso. Foram o menino guerreiro Õeõeri, Arowë, o valente, e o temível espírito Aiamori que a deram a conhecer no primeiro tempo.6 Desde então, as imagens desses ancestrais descem até nós desde onde um dia viveram, na terra dos Xamath ari. Õeõeri era um recém-nascido. Feiticeiros inimigos mataram sua mãe logo depois de ela ter dado à luz no chão da floresta. Abandonaram o bebê órfão sobre um ninho de formigas kaxi. Então, aos poucos, por causa da dor de suas queimaduras e no desespero de seu choro, o menino começou a virar outro. Cresceu muito depressa e logo se tornou um guerreiro valente. Atacou então a casa dos Xamath ari matadores de sua mãe tantas vezes seguidas que acabou com eles todos e, por isso, adoeceu depois de ter comido tantos inimigos. Por fim, os fantasmas dos xamãs da casa de suas vítimas, a pretexto de curá-lo, por sua vez o mataram. Desde então, os ataques continuaram entre as casas de nossos ancestrais, e os guerreiros mais agressivos foram tomados pela exaltação de flechar uns aos outros como caça. No tempo dos nossos antigos, é verdade que os Xamath ari guerreavam muito entre si. Matavam primeiro um ou dois homens numa casa vizinha. Então, os habitantes daquela casa choravam seus mortos e depois atacavam seus agressores para se vingar, e assim os reides entre uns e outros não tinham fim. Depois, o esperma e o sangue dos guerreiros belicosos eram transmitidos para seus filhos. Assim, estes seguiam os passos dos pais e cresciam com a mesma agressividade dentro deles. Por isso eram chamados Niyayopa th ëri, a Gente da Guerra. Esse era o nome que os antigos davam aos Xamath ari que habitavam os campos além das nascentes do Hwara u, lá onde ficou o fantasma de Õeõeri. Não lhe deram esse nome à toa! Eram gente belicosa mesmo! Eram guerreiros que ficavam animados para matar, pensando nos choros de luto de seus inimigos, como caçadores alegres por terem matado suas presas. Foram eles que ensinaram nossos ancestrais a se flechar uns aos outros e, a partir de então, eles continuaram. A imagem dessa Gente da Guerra continua existindo nas terras altas de nossa floresta, onde seus filhos continuam brigando entre si, seguindo o rastro de seus antepassados. Foi a partir desses primeiros guerreiros que se espalhou entre nós o costume de se atacar entre uma casa e outra. A imagem dessa gente se dividiu e se espalhou por toda parte. Foi assim que o fantasma da agressividade e da valentia guerreira waith iri se alastrou por nossa floresta e mais além, entre os xapiri que chamamos purusianari, bem como entre os brancos. É por isso que, desde então, todos conhecem a raiva e a guerra.

Porém, o que os brancos chamam de “guerra” em sua língua é algo de que não gostamos. Eles afirmam que os Yanomami não param de se flechar, mas são eles que realmente fazem guerra! Nós, com certeza, não combatemos uns aos outros com a mesma dureza que eles. Se um dos nossos é morto pelas flechas ou pela zarabatana de feitiçaria de um inimigo, apenas revidamos do mesmo jeito, procurando matar o culpado que se encontra em estado de homicida õnokae. É muito diferente das guerras nas quais os brancos não param de fazer sofrer uns aos outros! Eles combatem em grandes grupos, com balas e bombas que queimam todas as casas que encontram. Matam até mulheres e crianças! E não é para vingar seus mortos, pois eles não sabem chorá-los do nosso modo. Movem suas guerras só por terem ouvido palavras de afronta, por terras que cobiçam ou das quais querem arrancar minério e petróleo. Não é assim com os garimpeiros? Brigam o tempo todo por seu ouro, bebem muita cachaça e, virando fantasmas, se enfrentam como galinhas ou cães famintos, até se matarem. Fazem tudo isso por cobiça do ouro e nunca choram seus mortos: abandonam-nos embaixo do chão da floresta! Porém, no primeiro tempo, não foi por causa de terra, de ouro ou de petróleo que Õeõeri fez surgir a valentia guerreira waith iri! Não foi por cobiça dessas coisas que os Niyayopa th ëri ensinaram nossos ancestrais a se flechar! Nós, habitantes da floresta, guerreamos apenas para nos vingar, por raiva do luto que sentimos quando alguém mata um dos nossos. Não ficamos nos flechando a torto e a direito, sem boas razões! Choramos nossos mortos por muito tempo, durante várias luas, pois carregamos sua dor no fundo de nós e não paramos de querer vingá-los. Por isso nossos ancestrais apreciavam a bravura guerreira tanto quanto os dos brancos amavam suas mercadorias!

Embora os brancos se achem espertos, seu pensamento fica cravado nas coisas ruins que querem possuir, e é por causa delas que roubam, insultam, combatem e por fim matam uns aos outros. É também por causa delas que maltratam tanto todos os que atrapalham sua ganância. É por isso que, no final, o povo realmente feroz são eles! Quando fazem guerra uns contra os outros, jogam bombas por toda parte e não hesitam em incendiar a terra e o céu. Eu os vi, pela televisão, combatendo com seus aviões por petróleo. Diante daqueles fogaréus, de onde saíam imensas colunas de fumaça preta, pensei, apreensivo, que elas poderiam um dia chegar até nossa floresta e que os xapiri não conseguiriam dispersá-las. Mais tarde, revi muitas vezes essa mesma guerra no tempo do sonho. Isso me preocupou muito, porque pensava: “Hou! Esse povo é mesmo muito agressivo e perigoso! Se nos atacasse desse modo, iria nos reduzir a nada, e a fumaça de epidemia de suas bombas logo acabaria com os poucos sobreviventes!”.

Os brancos escondem o corpo de seus mortos debaixo da terra, em lugares que chamam de cemitério. Eu os vi com meus próprios olhos. Já nossos maiores, desde o primeiro tempo, enterravam ou bebiam as cinzas dos ossos de nossos mortos. Os brancos não fazem guerra por seus cemitérios. Nós, ao contrário, só guerreamos pelo valor das cabaças de cinza de nossos defuntos mortos por inimigos. Essas são as únicas palavras de guerra verdadeiras para nós. Somos outra gente. Só nos flechamos quando queremos resgatar o valor do sangue de um dos nossos; só quando queremos tornar recíproco o estado de homicida õnokae daqueles que o mataram. Isso não acontece o tempo todo e não atacamos gente de outras casas por nenhuma outra razão. Mas quando os parentes de um morto sabem onde moram os guerreiros que o flecharam, lançam em seguida um ataque para vingá-lo. E quando se trata de feiticeiros oka que quebraram os ossos de um grande homem, acontece o mesmo. Assim que visitantes trazem notícias sobre a casa de onde podem ter vindo, um grupo de guerreiros parte imediatamente em busca de vingança.

Então choramos o falecido com muita raiva. Seus próximos queimam suas pontas de flecha enquanto se lamentam com muita dor. Seus ossos também são queimados e suas cinzas são guardadas, para encher várias cabaças pora axi. Mas parte dessas cinzas novas é esfregada no chão pelos guerreiros que querem vingá-lo, enquanto imitam a imagem da onça. Fazem isso para poder enganar os que o mataram, para poderem pegá-los de surpresa e revidar. Depois, cobertos de tintura preta, eles se juntam no centro da casa com seus arcos e flechas. Então, agora imitando a imagem do urubu, começam a jogar no chão pacotes de ossos de caça que tinham presos na boca com um cipó. Para afastarem o medo que poderia enfraquecê-los, os xamãs em seguida fazem descer para junto deles a imagem dos ancestrais que, no primeiro tempo, fizeram chegar a bravura guerreira à floresta e, depois, as dos espíritos macaco-prego, para torná-los vigilantes em combate. Chamam também as imagens de guerra wainama e õkaranama, que irão na frente deles durante suas incursões. Depois fazem dançar as imagens de comedores de gente que chegarão a seu lado para devorar seus inimigos, como as do urubu, da onça e do gavião herama, e também as das moscas e dos vermes, e ainda das abelhas xaki, õi e wakopo, que se alimentam de sangue e carne putrefata. Por fim, fazem também descer a eles as imagens de seres de morte que os precederão até seus inimigos, como as dos espíritos funerários yorohiyoma e hixãkari, espíritos de mau agouro õrihiari e espíritos da fome de carne humana naikiari. Depois de tudo isso, antes de se porem a caminho, os guerreiros treinam flechando cupinzeiros ou pacotes de folhas de palmeira hoko si representando inimigos, para testar sua habilidade. É o que faziam nossos antigos antes de partir para um reide. Enviavam todas essas imagens funestas para a casa da gente que iriam atacar, para matá-la mais facilmente. Seus xapiri também destruíam as casas de espíritos dos xamãs inimigos que poderiam se opor a eles e depois, com a chegada de todas essas imagens de morte, os guerreiros mais valentes dentre seus adversários ficavam enfraquecidos e não podiam mais combater.

Mais tarde, depois do primeiro ataque lançado na cremação dos ossos do falecido, seus filhos, sua mulher e seus cunhados choram-no de novo durante um reahu no qual as cinzas do alto de sua cabaça funerária são enterradas à beira do fogo de sua viúva. Então são convidados homens de outras aldeias, a quem se pede, num diálogo de convite hiimuu, que se juntem aos guerreiros da casa que sairão num novo ataque para vingar o defunto. Se não conseguirem flechar nenhum inimigo nessas primeiras tentativas, tudo recomeça do mesmo modo durante vários reahu, com as cinzas do meio e depois do fundo da cabaça funerária. E por fim, quando ela fica vazia, quando a raiva do luto passa, as incursões guerreiras também cessam. É assim que acontece. Quando uma morte se deve a um rastro de flecha, as cinzas do defunto nunca são sepultadas enquanto ele não estiver realmente vingado. Mas isso pode demorar um certo tempo. Muitas vezes, os atacantes não encontram os inimigos que procuram, porque mudaram de casa ou se refugiaram em acampamentos na floresta. E mesmo quando conseguem localizá-los, nem sempre conseguem atingir os guerreiros reputados que querem flechar para aplacar sua vingança. Pode também acontecer de os habitantes da casa atacada estarem atentos e repelirem seus agressores com saraivadas de flechas assim que os avistam! Assim é. Enquanto suas mãos não atingem quem procuram, enquanto não tiverem flechado um homem em estado de homicida õnokae, os parentes do defunto partem em novos ataques depois de cada reahu.

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O trecho acima faz parte do livro A queda do céu [Companhia das Letras, 768 págs., tradução da língua francesa de Beatriz Perrone-Moisés], do xamã e porta-voz dos Yanomami, Davi Kopenawa.

Publicada originalmente em francês, em 2010, na prestigiosa coleção Terre Humaine, a história traz as meditações do xamã a respeito do contato predador com o homem branco, ameaça constante para seu povo desde os anos 1960.

O livro foi escrito a partir de entrevistas do etnólogo francês Bruce Albert, com quem Davi nutre longa amizade por mais de trinta anos. A obra é um testemunho autobiográfico, manifesto xamânico e libelo contra a destruição da floresta Amazônica.

Davi nasceu por volta de 1956, em Marakana, casa comunal situada no extremo norte do Amazonas. É presidente fundador da associação Hutukara, que representa a maioria dos Yanomami no Brasil. Foi condecorado com a Ordem do Mérito do Ministério da Cultura.

Avaliação: _pena-01_pena-01_pena-01[ótimo]

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