Por Raimundo Neto*

Do lado de fora do centro cultural Casa das Rosas, em São Paulo, a liberdade chega montada num grito pagão. Um carro imenso, de uma marca caríssima, blindado talvez, mas não imune às imundas composições líricas de Glauco Mattoso, Roberto Piva e Horácio Costa. A luxúria carrega um cavaleiro que anuncia a poética transgressiva de Mattoso-Piva-Costa, ao que os atores seguem costurando passados fodidos para reinventar seus presentes heroicos. Homens sem sombra, coloridos até o miolo dos dentes; suas belezas revestidas de um meticuloso brilho pornopoético cercam e gritam a libertação de muitos desejos. O público acompanha ainda fora da casa, enquanto os sons avançam. O público está fora, e dentro de tudo que é dito. E as portas abertas da Casa são um convite para um texto que proporciona largas risadas e reflexões profundas.

São histórias sobre experiências homoeróticas, baseadas na poética da diversidade sexual de Mattoso, Piva e Costa. E vai além: Tem homem em todo canto. Homens que foram crianças crescidas na maldição de um deus que não se abre para o perdão; e o desejo desses homens reverbera por dentro da casa, e ricocheteia pelas paredes, até atingir muitos alvos: miram no corpo e acertam na alma.

E as palavras deslizam, livres, acorrentam-se ao pecado, ou à ideia do que é estar dentro de uma liberdade pecaminosa. São os preconceitos imundos vividos por Mattoso na infância, por exemplo, que explicam o que é pecar um desejo certo e único. Não há demônio em corpo sem remorso. Os corpos expostos, os pelos eriçados, o verbo solto. Tem cu por todo lado. Tem pau sendo dito e cantado. A sujeira não é deles, é do outro que não acredita no deus de mil cabeças. A poesia é um ritual da carne suada, da língua sedenta, dos dentes afiados comendo a verdade alheia. Os rituais são punhos que arregaçam intimidades de um menino nu; a fé é o renascimento depois de ter sido humilhada por meio mundo de adolescentes desejantes que enfiaram pés sujos em sua boca inocente e a transformaram em uma voz denunciante com a força de uma poesia violenta.

Os homens narram pontos de seus corpos que são caminhos da perdição: a cartografia de uma história secreta. Infâncias que só conheciam os mistérios da carne (amém); corpos que cresceram apavorados com a sociedade que acorrentou suas ideias de amor à perversidade (amém); almas que se descobriram aprisionadas às regras que aparam arestas e obrigam o fechamento das entranhas para que o desejo não escape (amém). Homens que viveram encarcerados a uma normalidade formalizada. São esses homens que escrevem, com a língua, as palavras que redimem e salvam (amém). Esses mesmos homens expõem a alma em carne viva. Os sentidos permanecem nus. E os olhos vestidos de coragem. (Livrai-os do mal dos homens de bem!)

São poesias e trechos de vidas inteiras. A cada momento, as poesias de Mattoso-Piva-Costa costuram-se irmãs, incestuosas, sem vergonha. E os homens seguem explorando a intimidade das palavras. Palavras que se espalham livres. Mas para serem contadas, na intimidade de um segredo que custa ser dito, elas precisam ser cuspidas e lambidas dentro do Cabaré. O puteiro onde tudo faz sentido. É que amor de bicha é sempre condenável. Bicha não ama, bicha dá o cu com gosto. Bicha é puta, é pervertida; tem um cheiro de podre. Bicha, vadia, puta, vagabunda, bichinha, chupadora de rola. Com a boca cheia de tudo que é dito a um ‘viado’ (que faz dele um bicho – e uma bicha também), nasce a poesia do Cabaré Falocrático.

Os versos livres e excitados de Glauco Mattoso, Roberto Piva e Horácio Costa ganham as bocas dos homens à flor da pele. O erotismo não é pecado; o erotismo, o ir e vir do corpo, derramado sobre outros corpos é uma ladainha ao deus do verbo foder. O sagrado é a poesia. A fugacidade tem um pau imenso que arregaça a verdade de uma família aterrorizada pelo sexo e pela vida divina daqueles homens. Doentio vem de dor, disse um dos poetas. E se dói é porque o sagrado está vivo: é o grito do corpo que não quer morrer pelas mãos do preconceito.

Durante a apresentação, a racionalidade não capta as sutilezas, é preciso abrir o peito. Só então enxergamos: a poesia é um corpo cuspidor de fogo, uma alma armada com as espadas de Oxum, rodando a saia bonita da Pomba Gira, prestes a conquistar o Absoluto do Mundo, numa dança “delirante do desejo”. Não há lógica em qualquer poesia. Não há lógica em Piva, nem Mattoso, nem em Costa.

Em Cabaré Falocrático há os pudores adestrados de um masculino que é feminino, de um feminino que é masculino, de um gênero que poderia ser tudo, se não fosse sacrificado em nome de homens que construíram a ideia de um deus simplório que só comporta homem e mulher.

A cada passo, os atores erguem das ruínas insalubres de um passado sofrido um lugar novo que comporta a destruição de famílias pela revelação de um filho-bicha, que abarca filhos-deuses que abandonaram a ausência de pais decepcionados; na nova casa que se ergue os amantes são múltiplos, o amor é universal; mas esse mesmo amor esbarra nas mobílias velhas, carcomidas, sujas de porra de outrora; a música que ecoa é poema cantado, e o chão cheio de pelos e cuecas emporcalhadas faz o medo de ser menos homem escorregar.

A cada lembrança, a casa se enche de ruínas de esperança. E a cada lembrança, um novo lugar se ergue. Um entra-e-sai de recordações, de vislumbres, de corpos que se encaixam tão completamente – Ah! A perfeita incompreensão de homens que estão perdidos no amor de milhares de outros.

E ali, na ficção dos corpos, a chama que estala é poesia. Com o sexo, o corpo aprende a escrever a própria história e os homens em cena exploram os sentidos da sexualidade. Escrevendo em um manifesto berrado, gozado também, a anarquia do corpo.

As poesias de Mattoso-Piva-Costa soam como orações. Repetições catárticas de um amor que só quer ser livre e compreendido.

Em Cabaré Falocrático, a sombra dos homens tem luz e a palavra de desordem é o falo.

O Cabaré acontece na Casa das Rosas, em São Paulo, às sextas-feiras, 20h, até 23 de outubro.

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Raimundo Neto é escritor. Colabora com a São Paulo Review

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