Pandêmico

Hoje estreamos coluna quinzenal de Ricardo Ramos Filho. Leia abaixo sua primeira crônica. 

* Por Ricardo Ramos Filho *

Estive hoje na farmácia. Receitas necessárias, medicação controlada, morosidade no atendimento. Tenho sempre a impressão, em tais momentos, na hora de comprar os remédios, de viver em um país sério. Ninguém leva nada para casa sem assinatura, inscrição do CRM e carimbo do médico no receituário, tarjas pretas e vermelhas, prescrições são verificadas pelo atendente, checadas novamente por outro, endereço, número de documento, telefone, uma chatice sem fim. Acabam sempre descobrindo alguma inconsistência, a impressão passada é de não desejarem fazer a venda. Dito e feito. Não poderia levar três caixas de cada como anotado no pedido. Droga! Em todos os sentidos. Há uma portaria vigorando, ou seja, um ato administrativo com força de lei, impedindo as substâncias tarjadas de serem vendidas para mais de dois meses de uso. Da forma como o doutor havia prescrito, durariam três meses. Como sempre faço em ocasiões que me exasperam, muno-me de grande humildade, represento o velhinho desamparado e pergunto candidamente se não poderiam então comercializar apenas duas caixas. Podiam! A cesta fica cheia. Depressão, insônia, pressão alta, colesterol, analgésicos, álcool gel, desodorante, pasta de dente, fio dental, aparelho de barbear, todos os males e rotinas de higiene atendidos. Um bimestre longe do comércio do farmacêutico!

No caixa repito o nome do convênio, o CPF, aguardo a atendente sorridente, presumo que esteja sorrindo por traz da máscara descartável, ir lendo com o aparelho móvel o código de barra de cada um dos itens. Assusto-me com o crescimento acentuado do valor a ser pago mostrado no visor. Divido a compra em parcelas, deixo o recinto atordoado. No estacionamento entro no carro ainda com as mãos úmidas do desinfetante, ajeito o pano protetor sobre o nariz, impaciento-me com a insistência dele em permanecer escorregando. O valor pago na compra lateja em minha cabeça, nos bolsos, em todos os lugares.

Vivemos um tempo horroroso. A pandemia arrasta-se, parece comprazer-se em nos matar de forma lenta, aos pedacinhos, verdadeira tortura. Particularmente sou um sujeito impressionável, esforço-me para existir alheio aos noticiários, mas nem sempre consigo escapar das manchetes. E elas, invariavelmente, até por eu ser também curioso, empurram-me para textos cruéis, mesquinhos, fartos em descrições sádicas, desgraças capazes de me consumir, embrulhar-me o estômago, toldar meu espírito. Manaus, por exemplo. Se por desventura caio nas armadilhas espalhadas por aí, nos relatos detalhados, naquilo sucedido no escuro cotidiano “covídico” da realidade dos hospitais, mergulho em enorme tristeza, medo, perco o sono. Alterno com relativa frequência noites insones, amargura, com sonos cheios de pesadelos, o mundo reveste-se de cores sombrias, frequentemente sou levado ao choro. Sofrimento terrível. Tornei-me um vivente instável. Imagino cilindros transparentes de oxigênio vazios. Fico observando o gás de minha fantasia ir diminuindo, secando, asfixio.

Entre as substâncias capazes de me aparelhar para enfrentar os transtornos do meu dia a dia, encontram-se aquelas capazes de livrar-me da depressão e das noites em claro. São importantes. Sem elas respiro mal, falta-me o ar, tendo a sufocar. Repito involuntariamente sintomas do Covid-19, acabo gastando em vão dinheiro para fazer o RT-PCR, sorologia capaz de identificar o material genético do SARS-Cov-2 na amostra do paciente. Como os sintomas são apenas psíquicos, jogo numerário fora pagando o teste. Preciso é de antidepressivos e soníferos, meus companheiros na batalha diária. Solução comum a tantos outros combatentes.

Socorro caro. Deixo fortunas na drogaria. Mas perderia definitivamente o sono e ficaria tomado pela melancolia não fossem as drogas adquiridas. Então percebo, com o bom humor providenciado pelo entorpecente, alucinógeno, estimulante, seja lá o que for, ter caído em um círculo vicioso. O mal me conduz ao tratamento, o custo do tratamento me leva também ao mal. Terapia não basta. Preciso, definitivamente, de vacina.

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Ricardo Ramos Filho  é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior. É Professor de Literatura, Doutor e Mestre em Letras no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa na área de literatura infantil e juvenil, onde vem trabalhando academicamente Graciliano Ramos – seu avô -, privilegiando o olhar sobre seus textos escritos para crianças e jovens. Ministra diversos cursos e oficinas literárias: como aprimorar o texto, literatura infantil, roteiro de cinema, poesia, conto,  crônica, romance. É roteirista de cinema com roteiros premiados. É orientador literário e analista de originais, colaborando com escritores na elaboração de seus livros. É cronista do Escritablog , publicando no espaço Palavra de Cronista, e do InComunidade, revista de literatura do Porto, Portugal. Participa como jurado de concursos literários: Proac, Portugal Telecom, Prêmio São Paulo de Literatura. É presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio-proprietário da Ricardo Ramos Filho Eventos Literários cria e produz eventos culturais. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

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