É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Anita Deak *

Seu nome era Arthur. Ainda não sorria, não brincava, não havia escavado no mundo um espaço para si, não havia experimentado a linguagem nem o gesto, era apenas Arthur, 39 semanas na barriga de sua mãe, crescendo, se desenvolvendo, no vir a ser que é começo e promessa, esse tempo estranho que a memória não registra. Arthur. Que terá captado de sua mãe, sua porta-voz do mundo, dentro da parede escura de seu útero? Que haveria mais para ver, para ouvir?

Mundo líquido o de Arthur. Com 39 semanas, os órgãos estão desenvolvidos. Ele acumula gordura para manter a própria temperatura depois de nascer, o corpo se embarreira contra a morte. Mãos e pés se movem; se pudéssemos nos lembrar, se ao menos pudéssemos, ouviríamos agora dois corações batendo, a primeira poesia escrita em líquido aminiótico, tambor do tempo e do desejo, existo, existo, existo.

Falta uma semana para Arthur conhecer Duque de Caxias e o rosto de sua mãe, Claudineia dos Santos Melo. Arthur que é lacuna, que não se construiu homem ou mulher ainda, que não é triste nem feliz, Arthur página em branco, devir, Arthur que um dia amaria e seria amado, que cumpriria esse destino de bestas que somos, sendo bom e ruim, não importa, a vida é mesmo uma passagem efêmera pela imprecisão das coisas.

Ah, Arthur, tantas coisas… mas a bala atravessou seu tórax, perfurou seus pulmões e atingiu sua coluna. Você nem viu de onde veio, abrigado em sua primeira casa. Havia, no entanto, um falo entre sua mãe e o mundo. Toda arma é um falo, Arthur; pega, pega, pá, pá, pá, penetraram em você, em seu sangue e suas vísceras na busca pela aniquilação – de quem, do quê?

Ainda assim, você viveu trinta dias. Não há palavras que possam ser colocadas em sua boca, seria um desrespeito à sua luta, à sua linguagem em construção, ao muito que você era e não era, tão cedo expatriado das possibilidades. A incubadora como campo de batalha, e talvez você ficasse paraplégico se sobrevivesse, e paraplégico sentiria a brisa morna do Rio de Janeiro, talvez, o que seria de você, Arthur? Você gostaria de ver o mar?

Aquilo que não pôde ser pesa a incógnita. Fique registrada a sua morte, 30 de julho de 2017, coração miúdo. Inexiste o seu andar, a sua primeira palavra, toda a geografia do que teriam sido seus gestos. Arthur, bebê, algodão doce, futuro do pretérito. Dupla batida de corações enterrados.

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Anita Deak é escritora, autora de Mate-me quando quiser. No momento, termina seu segundo romance

 

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