É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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Por Rodrigo Ciríaco *

Bala perdida ou bala pedida? Na medida? Pedidos. Mas quem fez o pedido? Quem, todos os dias, ainda faz este pedido: Rio de Janeiro, quatorze tiroteios ao dia. Quatorze tiroteios por dia! Disparos a esmo na porta. Da escola, de casa, do bar. Na rua. Na quadra de jogar bola. Bala perdida? Já disseram: “não existe bala perdida se a mira é na favela”. Não existe bala perdida se a mira é na favela. E é tão sempre ela. É impressionante, o quanto a gente encontra. Perdida. Nos becos, morros e vielas. Quantas vidas perdidas? Quantos gritos? Quantas mães por chorar? Nunca se calar. Uma delas ainda diz: “ninguém cala a voz de uma mãe. Não é uma bala, um tiro que vai me calar”. Não vai calar. Não calar. Essa devia ser a única pedida. E não sangrar. Por mais uma. Bala perdida. Em corpos: pretos, pobres, pequenos. Do morro. Como se diz perdido algo que tem mira certa? Algo que não podemos gritar: socorro. Algo que tem destino certo. Endereço. Porque nunca chove pedidos de balas perdidas em bairros nobres? Copacabana, Leblon, Ipanema. Já imaginou, a cena? Alguém todos os dias, mirar: um revólver, uma pistola, um fuzil, para apartamentos e casas do mais caro metro quadrado do Brasil? O sangue escorrer na sala de jantar, no quarto de boneca da filha, na geladeira, fogão, o filho do asfalto tremendo pra se jogar esconder em baixo da mesa, como se corre, escorre no morro desde que foi ocupado? Não, isso não é um pedido. Nem desejo. É uma constatação. Não existem balas perdidas. Todas tem endereço. Uma bala nunca é cuspida, ferro e fogo assim, a esmo. Ela vai certa: no peito, na testa. No centro do coração. Raras passam pelos pés, braços e mãos. Essas balas não estão perdidas. Pergunte a quem morre. A quem diante do caixão chora, faz oração. Elas sabem: tem o mesmo endereço. Mesmo CEP. Mesmo resultado: uma comunidade perdida. Emocionalmente doente. Sofrendo na tragédia e nos traumas. A gente sabe quem dispara. A gente sabe por que disparam. A gente sabe quem morre. A gente sabe quem mata. A gente só não sabe como parar. Deus, como parar? Já foram mil a minha esquerda, dez mil a minha direita. Ao contrário de tua promessa, sou continuamente atingido e fico a sangrar. Vamos achar? Distribuir? Lápis-caderno-chiclete-pião? Sol-bicicleta-skate. Menos caixão. Vamos espalhar balas? Menta, chocolate, iogurte e caramelo. Menos pedidos de balas perdidas e crianças caídas no chão? Mas não. É sempre a mesma pedida. BOPE, PM, Caveirão. Tráfico, troca, guerra às drogas. Polícia e ladrão. Sobe e dispara. Não importa se vê a cara. O rosto. Cospe com gosto. A mesma pedida. A cidade-maravilha. Com endereço certo. Pro choro. Pra vela. Pra estatística na matéria. Pras balas pedidas.

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Rodrigo Ciríaco é educador e escritor, autor de Te Pego Lá Fora, 100 Mágoas e Vendo Pó…esia

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