*Por Daniel Manzoni-de-Almeida*

Uma reflexão sobre a questão a partir da leitura do romance de estreia “O que sei sobre você” do escritor Éric Chacour

Quando me percebi no mundo, principalmente ao reconhecer minha identidade homoafetiva, não havia ao meu redor qualquer referência à qual eu pudesse me agarrar. Ser homossexual nas décadas de 1980 e 1990 era sinônimo de doença, sobretudo devido à pandemia do HIV/AIDS e às fake news que a rotulavam como a “peste gay”. Além disso, significava ser alvo de chacota e marginalização. Foi na biblioteca da escola, por meio dos livros, que encontrei referências como Oscar Wilde, Federico García Lorca e Caio Fernando Abreu. Construí meu universo subjetivo da homoafetividade lendo às escondidas, nas madrugadas, sob a luz singela de um abajur, mergulhando na tensão poética desses autores.

Jamais esquecerei a bibliotecária da escola tentando sabotar minhas escolhas de leitura. Sempre que eu pegava um livro de Abreu ou Lorca e o apresentava para empréstimo, ela reagia com desaprovação: “Isso não é leitura para um menino. Só vou deixar você levar esse livro depois que ler todos os outros desta estante”, dizia, apontando para prateleiras repletas de aventuras de super-heróis, bruxos e fantasias infantojuvenis. Eu tinha 15 anos, me descobria estranho, inadequado, queimava de paixão por outro rapaz. O que menos queria eram histórias de bruxinhos. Para driblar sua sabotagem, pegava dois ou três livros dessas estantes e, entre eles, escondia aqueles que realmente me interessavam. Foram esses livros que, naquele princípio, me ajudaram a me integrar no mundo.

Esse movimento de buscar amparo na literatura me acompanhou. Quando imigrei para a França — país onde moro atualmente —, fiz o mesmo: busquei histórias homoafetivas contadas por imigrantes. Queria entender: como são as subjetividades de outros imigrantes? Como vivenciam sua homoafetividade no país de origem e no país de chegada? Como se integram na nova sociedade? O que deixam para trás? Como tudo isso se traduz na literatura? Essas perguntas, que transitam em mim de maneira pessoal e profissional, levaram-me a transformar esses escritos em projetos de pesquisa.

Na França, conheci diversos rapazes homossexuais que migraram de países onde a homossexualidade é crime. Ainda que vivessem agora em um lugar onde poderiam expressar livremente sua afetividade, muitos não conseguiam estabelecer relações. Algo do passado, da cultura em que cresceram, os prendia. Nesse contexto de homoafetividade e imigração, uma questão se impôs: é possível viver plenamente uma vida homoafetiva em uma nova cultura, desprendendo-se do passado? Ou seja, é possível reconstruir-se em um novo país? Passei a ler tudo o que encontrava sobre essas experiências. Um dos livros que emergiu nesse percurso foi “Ce que je sais de toi”, do escritor canadense, filho de imigrantes egípcios, Éric Chacour.

“Ce que je sais de toi” (2023) edições Folio (França) (“O que sei sobre você”) (Editora DBA literatura) é dividido em três partes: “Você”, “Eu” e “Nós”. À primeira vista, trata-se de uma história de amor entre dois homens, aparentemente simples e romântica. No entanto, o cenário e as circunstâncias revelam uma tensão profunda, que Chacour narra de maneira poética.

O livro conta a história de Tarek no Egito das décadas de 1980 e 1990. Um homem comum, com uma vida ordinária: casado, pai de família, médico bem-sucedido, herdeiro do consultório do pai, fiel às tradições culturais, religiosas e familiares da sociedade egípcia. Tudo parecia seguir seu curso até a chegada de Ali, jovem que passa a ser seu assistente na clínica médica. A presença de Ali desperta em Tarek desejos e sentimentos reprimidos, transformando definitivamente sua vida. Imersos em uma sociedade que rejeita as relações homoafetivas, ambos enfrentam desafios e agressões sucessivas por tentarem viver esse amor, até que toda a tensão explode como um barril de pólvora.

Nas primeiras 200 páginas, a narrativa se desenrola sob a perspectiva de um narrador misterioso, que relata os acontecimentos com um conhecimento intrigante sobre os personagens. A tensão da leitura oscila entre o desenrolar da relação entre Tarek e Ali e o mistério sobre a identidade desse narrador. Na segunda parte, “Eu”, a revelação de quem narra a história surpreende imensamente. Na terceira parte, “Nós”, um segundo mistério se desvela: em menos de dez páginas, Chacour utiliza um recurso narrativo brilhante que confere grandeza à história, tornando esta a parte mais linda e tocante do livro.

Retomando minha pergunta inicial — somos capazes de nos libertar das amarras culturais para viver uma história de amor? —, Chacour é pessimista. As tradições podem ser vilãs perversas das histórias de amor. No entanto, há esperança em sua narrativa: mesmo diante das crueldades impostas pela sociedade, o amor tem o poder de criar memórias que atravessam gerações e possibilitam a construção de novos caminhos. O amor, na história de Chacour, é a semente de uma herança imaterial que pode emancipar alguém no futuro. O que aprendo com essa história é que, sem sequer nos darmos conta, ensinamos algo simplesmente por amar.

Quando eu pegava um livro de Lorca, Wilde ou Abreu na biblioteca, não estava apenas folheando uma narrativa; estava entrando em contato com o que eles sabiam sobre o mundo. Eles me contavam suas histórias para que eu pudesse viver melhor no meu tempo — e talvez até encontrar um mundo melhor do que aquele que viveram. A literatura tem esse poder: criar os mundos que não existem para despertar em nós o desejo de torná-los reais.

O amor proibido entre dois homens pode não ser possível em uma sociedade marcada por tradições e proibições. Essa é a experiência narrativa que o livro de Chacour nos proporciona: contar uma história é uma tentativa de mudar o real no futuro.

Parte II: Entrevista com o escritor Éric Chacour

DANIEL: Como você se tornou escritor?
ÉRIC: Um pouco por acaso, um pouco por frustração. Sempre sonhei em escrever músicas. Sou fascinado por essa forma de escrita, que precisa ser concisa, incisiva e, acima de tudo, musical. Meu problema era que eu não sabia tocar nenhum instrumento nem conhecia compositores que pudessem me ajudar. Durante muito tempo, escrevi canções sem melodia ou adaptei minhas próprias letras a músicas já existentes. Mas, com o tempo, isso começou a parecer inútil. Então, me voltei para uma forma de escrita que não exigia conhecimentos musicais e dependia inteiramente de mim: o romance. Provavelmente, eu nunca teria escrito um livro se soubesse tocar piano.

DANIEL: Como surgiu a ideia do livro Ce que je sais de toi?
ÉRIC: Acho que sempre escrevemos inspirados por nossas emoções mais intensas – aquelas vividas em nossa própria história, mas também as que surgem das obras de arte que nos marcaram. Minhas influências vêm de diversas áreas: literatura, claro, mas também cinema, música e teatro. Minha principal inspiração, no entanto, veio de Shakespeare: eu queria criar minha própria versão de Romeu e Julieta. Só que, desta vez, seria uma história entre dois homens, ambientada no Egito que meus pais conheceram.

DANIEL: Como foi o processo de escrita do livro? Que sensações e emoções você experimentou ao escrevê-lo?
ÉRIC: Tenho a sorte de sentir prazer e tranquilidade ao escrever. Gosto de construir histórias, desenvolver personagens, conduzir o leitor por caminhos inesperados… e torcer para que ele não me culpe por isso! No momento, sinto falta de escrever. O sucesso do meu primeiro romance ainda me surpreende e, nos últimos dois anos, ele me permitiu viajar para muitos países. Mas a contrapartida disso é que nunca escrevi tão pouco quanto desde que me tornei escritor!

DANIEL: Na sua opinião, qual é o poder da ficção na promoção de questões sociais importantes hoje? Você acredita que seu livro pode contribuir para o debate sobre o preconceito contra a diversidade sexual ou para discussões sobre imigração e diferenças culturais? De que forma?
ÉRIC: Existe uma ideia difundida de que toda arte é, por natureza, política. Pessoalmente, discordo. Um artista pode escolher colocar seu talento a serviço de uma causa, mas isso define sua prática, não a arte em si. Quando Picasso pintou Guernica, sua denúncia dos crimes de guerra era evidente. Mas quando ele fez uma gravura de uma árvore, não sei se havia ali uma mensagem política. Minha literatura não tem um propósito militante. Isso não significa que eu não tenha convicções ou compromissos, apenas que não tento impô-los aos outros por meio da minha escrita. Meu objetivo é contar histórias que despertem emoções – essa é minha única preocupação. Dito isso, quando recebo mensagens de leitores que nunca imaginaram se emocionar com uma história de amor entre dois homens, quando uma leitora do Haiti me diz que se identificou com o exílio que descrevo ou quando uma turma do ensino médio na Romênia, que estudou o livro, me envia um desenho de Ali e Tarek se abraçando diante das pirâmides… não posso evitar as lágrimas.

POURQUOI AI-JE BESOIN DE TE CONNAÎTRE ?

Une réflexion sur la question après la lecture du premier roman d’Éric Chacour, Ce que je sais de toi.

Par Daniel Manzoni-De-Almeida
Écrivain, psychanalyste
Docteur en théorie littéraire

Première partie : Ce que je veux savoir de toi

Lorsque j’ai pris conscience de mon identité homosexuelle, je me suis retrouvé sans repères. Dans les années 1980 et 1990, l’homosexualité était souvent perçue comme une maladie, notamment en raison de la pandémie de VIH/sida et des fausses informations la qualifiant de “peste gay”. Cela impliquait moqueries et marginalisation. Je me suis alors tourné vers la littérature pour trouver des figures auxquelles m’identifier : Oscar Wilde, Federico García Lorca, Caio Fernando Abreu. C’est en cachette, à la lumière d’une lampe, que j’ai construit mon univers subjectif à travers leurs œuvres.

Je me souviens de la bibliothécaire de mon école qui tentait d’entraver mes choix de lecture. Chaque fois que je présentais un livre d’Abreu ou de Lorca, elle exprimait son désaccord : “Ce n’est pas de la lecture pour un garçon. Je ne te laisserai prendre ce livre qu’après que tu auras lu tous les autres sur cette étagère.” J’avais 15 ans, je me sentais décalé, consumé par un amour naissant pour un autre garçon. Le dernier de mes désirs était de lire des histoires de sorcières et de super-héros. Alors, j’usais de stratagèmes : je prenais plusieurs ouvrages anodins et dissimulais ceux qui comptaient vraiment pour moi. À travers eux, je trouvais enfin ma place dans le monde.

Cette recherche d’ancrage littéraire ne m’a jamais quitté. Lorsque j’ai immigré en France, j’ai reproduit ce processus : je me suis mis en quête de récits d’homosexuels immigrés, soucieux de comprendre comment d’autres vivaient leur identité entre deux cultures. Quelles subjectivités les habitaient ? Comment s’intégraient-ils dans leur nouveau pays ? Qu’abandonnaient-ils derrière eux ? Ces interrogations ont nourri mes recherches et mes lectures.

En France, j’ai rencontré plusieurs jeunes homosexuels ayant fui des pays où leur orientation était criminalisée. Malgré un environnement plus tolérant, beaucoup restaient entravés par leur passé, incapables d’établir des relations amoureuses. Dans ce contexte, une question se posait : peut-on pleinement vivre une vie homoaffective dans une culture nouvelle en se détachant du passé ? Peut-on se reconstruire ailleurs ? C’est dans cette quête que j’ai découvert Ce que je sais de toi d’Éric Chacour.

Ce roman, publié en 2023 aux éditions Folio, est divisé en trois parties : “Toi”, “Moi” et “Nous”. Au premier abord, il s’agit d’une histoire d’amour entre deux hommes, mais le contexte et les enjeux culturels y insufflent une profondeur bouleversante.

Tarek, le protagoniste, vit dans l’Égypte des années 1980-1990. Homme ordinaire, marié, père de famille et médecin respecté, il incarne la conformité aux traditions. Sa vie bascule avec l’arrivée d’Ali, un jeune assistant médical qui réveille en lui des désirs interdits. Dans une société qui réprime les relations homosexuelles, ils affrontent discriminations et violences, jusqu’à l’inéluctable drame.

Les 200 premières pages sont portées par un narrateur énigmatique qui semble connaître intiment les personnages. Puis, dans la deuxième partie, “Moi”, son identité se révèle, bouleversant la perception du récit. Enfin, dans “Nous”, en moins de dix pages, Chacour opère un tour de force narratif, transformant l’histoire en une poignante méditation sur la transmission et la mémoire.

Face à la question initiale – peut-on se défaire des entraves culturelles pour aimer librement ? – Chacour adopte une posture réaliste, voire pessimiste. Les traditions apparaissent comme des forces oppressives. Pourtant, il entrevoit un espoir : l’amour, même dans l’interdiction, laisse une empreinte. Il devient un héritage immatériel, porteur de possibles pour les générations futures.

Lorsque je lisais Wilde, Lorca ou Abreu, je ne faisais pas que découvrir des histoires : je plongeais dans une transmission de savoirs, une manière de mieux appréhender le monde et, peut-être, d’en façonner un meilleur. La littérature déploie ce pouvoir : créer des réalités imaginaires qui inspirent des transformations tangibles.

L’amour interdit entre deux hommes est-il condamné à l’échec dans une société régie par les interdits ? Chacour répond par la littérature, et c’est précisément en racontant cette histoire qu’il tente de remodeler l’avenir.

Deuxième partie : entretien avec l’écrivain Éric Chacour

DANIEL : Comment êtes-vous devenu écrivain ?

ÉRIC :Un peu par hasard, un peu par dépit. J’ai toujours rêvé d’écrire des chansons. Je suis fasciné par cette forme d’écriture qui se doit d’être concise, percutante et, par essence, musicale. Mon malheur était que je ne savais jouer d’aucun instrument ni ne connaissais d’amis compositeurs. Alors, longtemps, j’ai écrit des chansons sans musique, ou bien réécrit mes propres paroles sur certaines qui en avaient déjà. Puis tout cela m’a semblé un peu vain ; je me suis donc rabattu sur une autre forme d’écriture qui ne nécessitait aucune expertise particulière et ne dépendait que de moi : le roman. Je n’en aurais sans doute jamais écrit si j’avais su me servir d’un piano.

DANIEL : Comment vous est venue l’idée du livre « Ce que je sais de toi » ?

ÉRIC : Je pense qu’on écrit toujours par rapport à ses émotions les plus fortes, celles rencontrées dans notre propre vécu mais aussi celles qui nous viennent des œuvres d’art qui nous ont touché. En la matière, mes influences sont issues de diverses disciplines : la littérature, bien entendu, mais aussi le cinéma, la musique ou le théâtre. C’est d’ailleurs à Shakespeare que je dois ma principale inspiration : je voulais écrire ma propre version de Romeo et Juliette. Un Romeo et Juliette entre deux hommes, qui se passerait dans l’Égypte qu’ont connue mes parents.

DANIEL : Comment s’est déroulée l’écriture du livre ? Quelles sensations, quels sentiments, quelles émotions avez-vous éprouvés en l’écrivant ?

ÉRIC :J’ai la chance de retirer de l’écriture plaisir et apaisement. Je m’amuse à construire des histoires, à développer le caractère de mes personnages, à emmener le lecteur sur des fausses pistes… tout en espérant qu’il ne m’en tienne pas rigueur ! En ce moment, l’écriture me manque. Ce premier roman a rencontré un succès qui ne cesse de me surprendre et m’a permis de voyager dans de nombreux pays depuis plus de deux ans mais la contrepartie est que je n’ai jamais aussi peu écrit que depuis que je suis écrivain !

DANIEL : Selon vous, quel est le pouvoir de la littérature de fiction pour faire avancer les questions sociales importantes aujourd’hui ? Pensez-vous que votre livre peut contribuer au débat sur les préjugés à l’égard de la diversité sexuelle ou aux discussions sur l’immigration et les différences culturelles dans le monde d’aujourd’hui ? Comment cela peut-il se produire ?

ÉRIC : Une idée reçue voudrait que toute forme d’art soit intrinsèquement politique. Je pense pour ma part que rien n’est plus faux. Un artiste pourrait choisir de mettre son talent au service d’une cause politique mais cela définirait, au mieux, sa pratique artistique, en aucun cas l’art de manière consubstantielle. Lorsque Picasso peint Guernica, la dénonciation des crimes de guerre à travers sa toile est évidente. En revanche, lorsque le même Picasso exécute une représentation d’arbre à l’eau forte, je ne suis pas sûr qu’il faille y chercher de déclaration politique. Ma littérature n’en est pas une de combat. Cela ne veut pas dire que je suis dépourvu de convictions, ou même d’engagements, mais simplement que je ne cherche pas à les imposer aux autres à travers mon écriture. Je raconte des histoires pour faire naître des émotions, voilà ma seule préoccupation. Ceci posé, lorsque je reçois des témoignages de lecteurs qui n’auraient pas pensé être émus par une histoire d’amour entre deux hommes, qu’une lectrice venant d’Haïti me dit s’être retrouvée dans l’exil que je décris, ou que qu’une classe de lycée en Roumanie, où ce livre a été étudié, m’envoie un dessin représentant Ali et Tarek, s’enlaçant devant les pyramides, je ne peux m’empêcher d’avoir les larmes aux yeux…

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor, psicanalista e doutor em Teoria Literária.

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