* Por Lourenço Cazarré *
Por que o papel de editor de livros atrai tantas pessoas? A resposta é simples: trata-se de uma atividade de grande prestígio porque, em tese, envolve, ao mesmo tempo, negócio e arte. Mas, na verdade, é um empreendimento muito delicado porque, além de não proporcionar grandes lucros, pode se tornar uma via rápida para a dissipação de patrimônios substanciosos.
Essas e outras opiniões estão reunidas em A marca do editor, de Roberto Calasso, livro lançado recentemente pela Editora Âyiné, de Belo Horizonte.
Mas o que faz hoje em dia um editor? Cabe a ele, em meio ao nosso caos cotidiano, identificar (e atender) uma tribo dispersa de pessoas que buscam algo que seja literatura, sem qualificativos, mas que seja também pensamento e investigação.
Para tentar definir melhor a profissão que exerce há quase sessenta anos na Editora Adelphi, de Milão, Roberto Calasso recorre a Claude Debussy. Quando indagavam do músico francês qual era a finalidade de suas composições inovadoras, ele simplesmente respondia:
– Faire plaisir.
Agradar, divertir. O objetivo deve ser esse mesmo, diz Calasso, embora atualmente seja muito difícil atingi-lo, visto que o editor se defronta com uma vasta multidão que lhe “entorpece o campo visual”. E o pior é que esse editor sabe que, “se ele mesmo desaparecesse daquele campo, não seriam muitos a percebê-lo”.
A marca do editor se divide em quatro partes. Na primeira e a mais extensa – intitulada “Os livros únicos” -, Calasso fala longamente de seu trabalho na editora Adelphi, especialmente na coleção Biblioteca.
A particularidade da Biblioteca, ao contrário do que costumeiramente ocorre com todas as coleções, é a reunião em um mesmo corpo de grande número de livros que nada têm em comum entre eles.
Mas, então, do que estamos falando?
Responde Calasso: “Livro único é aquele em que imediatamente se reconhece que aconteceu alguma coisa ao autor e essa coisa acabou por se depositar em um escrito”.
Mas há uma outra exigência: “Era necessário que quem escrevia tivesse passado por essa outra coisa, que a tivesse vivido no íntimo e a tivesse absorvido na fisiologia, eventualmente (mas não de forma obrigatória) transformando-a em estilo”.
Comentário avulso do editor: por serem tão estranhos, muitos desses livros únicos correram um grande risco: o de não terem sido impressos.
Vale a pena alinharmos aqui alguns títulos dessa coleção porque, em grande parte, eles não são conhecidos ou no Brasil ou aqui só tiveram edições abreviadas e sem o amparo de estudos críticos. O primeiro número coube a O outro lado, de Alfred Kubin, “único romance de um não romancista”, “escrito durante um delírio que durou três meses”. Kubin era artista plástico. O terceiro da série era outro romance fantástico: Manuscrito encontrado em Saragoça, de Jan Potocki (de que há uma versão reduzida em português brasileiro).
Outras obras: Milarepa (clássico do budismo tibetano); Solitary Confinement, do inglês Christopher Burney, que nele relata sua experiência solitária de 15 meses em uma prisão nazista; O monte Análogo – Romance de aventuras alpinas, não euclidianas e simbolicamente autênticas, de René Daumal; Pai e filho, de Edmund Gosse, “relato minucioso e equilibrado e dilacerante de uma relação pai-filho no período vitoriano”; Prince Zaleski and Cummings King monk, de M. P. Shiel; e O livro disso, do médico, filósofo e reformador social Georg Groddeck.
O editor milanês fala longamente sobre o lançamento dos chamados “romances duros”, de George Simenon, que alcançaram na Itália uma dimensão que não tiveram nem na França, nem na Bélgica, terra natal do escritor. Autor de três ou quatro centenas de livros (os números variam conforme as fontes), a maioria protagonizada pelo detetive Jules Maigret, Simenon escreveu 45 romances sérios, fortes, pesados. Um dos grandes narradores do século XX, ele era considerado aquele que melhor sabia criar atmosferas.
A aproximação entre o editor e o romancista belga ocorreu em 1982, quando Calasso foi encontrá-lo na sua casa em Lausanne, na Suíça. Na coleção Biblioteca, o Simenon inaugural foi A janela da frente. Nesse livro, cujo cenário é a cidade georgiana de Batumi, na costa do Mar Negro, Simenon antecipa, de acordo com Calasso, “o imenso sistema policialesco soviético”. Sobre novela, disse o crítico Goffredo Parise: “Escrito em meados dos anos 1930, por um gênio, essa breve obra-prima é o romance da polícia, do controle, da anulação total do homem sob a mais potente, importante e demiúrgica ditadura policialesca que o homem moderno já conheceu”
É também perceptível o orgulho que Calasso sente ao se referir ao resgate de outro grande autor, Joseph Roth, que estava meio esquecido no mundo da língua alemã, mas cujas obras teriam grandes tiragens pela editora italiana. A cripta dos capuchinos saiu em 1974 com 3 mil exemplares, já O profeta mudo, vinte anos depois, teve uma primeira tiragem de 30 mil exemplares.
De origem judaica, Joseph Roth nasceu em Brody, na hoje Ucrânia, então pertencente ao império austro-húngaro. Escritor e jornalista brilhante é considerado o grande cronista dos tempos que precedem a ascensão do nazismo na Alemanha. Morreu aos 44 anos em Paris.
No segundo capítulo de seu livro, Roberto Calasso traça retratos de alguns dos maiores editores europeus, com os quais conviveu: Giulio Einaudi, Luciano Foà, Roger Strauss, Peter Suhrkamp e Wladimir Dimitrijévic. Einaudi que, sabia “buscar e reconhecer pessoas de valor”, foi “o homem mais influente da vida cultural italiana”.
Roberto Calasso se refere com carinho a Luciano Foà, seu companheiro na Adelphi, apaixonado por Stendhal, Kafka, Goethe, Joseph Roth e Robert Walser. “Havia nele uma enorme capacidade de perceber o som falso das pessoas e das coisas – aquele som pelo qual somos cercados com tanta frequência”.
Sobre o alemão Peter Suhrkamp, registra o editor milanês: “Hesse e Brecht eram então os grandes autores da casa: incomparáveis entre si, Suhrkamp era amigo e admirava igualmente ambos – e isso já nos dá uma ideia da peculiaridade intraduzível do seu modo de ser”.
No capítulo de encerramento, Calasso fala especificamente da arte da edição. Lembra que os problemas da atividade hoje são os mesmos da metade do século 19, como se pode notar na correspondência de Flaubert e dos irmãos Goncourt com o editor deles, Lévy: “Em primeiro lugar, contratos, em que de maneira alternada o editor e o autor devem assumir o papel do amotinado, os erros nas provas, a publicidade insuficiente, a exposição na vitrina dos livreiros, as estratégias para conseguir certas resenhas, a perspectiva de um prêmio, a ser aceito ou recusado e o entorpecimento crônico do público”.
A qualidade de um livro, ou a falta dela, é em nosso tempo cada vez mais secundária, diz Calasso. Porque outras perguntas são feitas obrigatoriamente antes.
O livro é cool ou não?
Com que segmento social/cultural/étnico/político ele vai dialogar?
E o autor? Ele se sairá bem quando for entrevistado na televisão?
Estará pronto a viajar para incontáveis sessões de autógrafos e leituras públicas para divulgação da obra lançada?
Assim, para nos mantermos nas perguntas, podemos indagar: Mas até que ponto extremo pode chegar essa tão complexa arte da edição?
Um desses limites ocorreu nos anos que sucederam a revolução soviética, diz Calasso. Quando a inflação destruiu as topografias e editoras, o poeta Khodassevitch, o crítico Berdiaev e o romancista Osorgin se uniram para criar em Moscou a Livraria dos Escritores. Que, entre 1918 e 1922, foi o único lugar na Rússia onde alguém podia comprar um livro sem autorização. Essa livraria, escreve o editor italiano, “atingiu o auge de sua nobre história quando seus fundadores decidiram, dado que a edição tipográfica era impraticável, iniciar a publicação de obras com um único exemplar escrito a mão”.
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A marca do editor, de Roberto Calasso, Editora Âyiné, 2020, 174 páginas
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Lourenço Cazarré é escritor; tem cerca de quarenta livros publicados, a maior parte deles voltada ao público infanto-juvenil, sendo inclusive agraciado com o 41º Prêmio Jabuti em 1999, entre mais de vinte prêmios literários.