* Por Luiz Antonio de Assis Brasil *

Ao finalizar as cento e tantas páginas de O lado que não era visível para quem estava na estrada, obra mais recente de Luís Roberto Amabile, o leitor é possuído pela sensação de ter lido uma singular reunião de contos que, do ponto de vista literário, dá muito prazer, e, do ponto de vista humano, muito alívio. Os parágrafos que se seguem buscam desenvolver estas impressões de leitura, talvez justificá-las.

O título do livro (e de um conto muito bem-sucedido) remete ao conhecidíssimo ensaio de Ricardo Piglia, “Teses sobre o conto”. Nada mais apropriado, pois no ensaio o escritor e teórico argentino estabelece que a força de um conto reside no subtexto, na história subterrânea que emerge da história aparente. Ora, este “lado não visível”, que permeia as narrativas do livro e fazem com que elas nos acompanhem após a leitura, pode ser também chamado de subtexto. Não é fácil para nenhum autor construí-lo, assim como talvez não seja fácil para todos os leitores percebê-lo, mas certamente está presente do primeiro ao último dos 16 contos do livro de que se fala.

Passando aos temas tratados pelo autor: perpassa, no conjunto antológico, uma tríade composta por sentimentos e preocupações que se reportam à morte, ao humor (autohumor) e ao lirismo.

Tais preocupações e sentimentos decorrem de uma “sensação existencial”, no sentido sartreano e heideggeriano. Numa síntese grosseira, o Existencialismo diz que estamos condenados ao absurdo da conjuntura humana num mundo sem sentido e, como se sabe, resta a nós a tarefa de dar-lhe qualquer sentido. Caso exemplar de obra imbuída desses preceitos filosóficos é a novela A náusea, a mais conhecida de Jean-Paul Sartre, em que a personagem central, Antoine Roquentin, tem desde sempre consciência da absurda relação do ser humano com o mundo, o que o leva a questionar: por que existir?

A percepção do focalizador do contos de Amabile –seja o focalizador interno em primeira ou o externo, em terceira –, se não é exatamente a de um Roquentin, aproxima-se da dele nos momentos da morte: veja-se, sobretudo, o conto “Crônica de velórios anunciados”, em que a personagem, suas ações e pensamentos navegam num mar de coisas triviais e nem por isso menos perturbadoras, e ainda no conto-título do livro, em que somos conduzidos a um contexto em que os acontecimentos são, provavelmente, verdadeiros, mas se trata de uma verdade sempre posta à prova, quiçá por ser terrível. Mas não só nestes momentos a angústia de existência está presente. Ela também se manifesta no lirismo de “Beija-flor” ou “Pitangas”, casos em que o narrador mostra justificada compaixão por seus personagens, ou ainda no belíssimo quadro: “Cena citadina contemporânea”, de pendurar na parede.

Pelo que se disse até aqui, poderia ser um livro triste, o que não lhe tiraria qualidade literária, mas talvez não fosse o mais indicado para nós, leitores que vivemos em tempos tristes de pandemia e desgoverno. Há, porém, o humor que está nos contos e, além de quebrar expectativas e evitar clichês, deixa-nos menos deprimidos – se for possível. Na verdade, não é um humor no sentido amplo, mas um auto-humor, particular e patético, tal como se representa num Meursault, da novela O estrangeiro, de Albert Camus, mas sem o niilismo algo artificial que lhe é ínsito. Neste aspecto, destacam-se o conto inicial, “A quem interessar possa”, e o desconcertante “Fresta”, que contém um mapa do suposto trajeto de Paul Auster pela ruas de Paraty, em direção a um encontro com o narrador.

Voltando ao início: por que essa leitura dá prazer? A resposta é: porque se trata de boa literatura. Mas por que se trata de boa literatura?

Entende-se que um escritor deve saber qual o gênero de sua proposta literária, pois isso evitará desvios de rota que poderão comprometer o resultado. E Luís Roberto Amabile mostra que conhece bem o gênero conto. Seus textos envolvem poucas personagens, e, muita vezes, apenas uma. O autor sabe que o conflito no conto também é único ou nem isso, às vezes é apenas insinuado, às vezes num conto, como em “Visão”, nem é contada uma história, e sim mostrada uma situação crítica, a partir da qual intuímos a história.

Este recurso técnico, aliado à tríade temática, temperadas com uma “sensação existencial”, talvez expliquem, neste caso, a boa literatura.

Mas a leitura de O lado que não era visível para quem estava na estrada, como dito acima, proporciona, do ponto de vista humano, muito alívio. Esse alívio decorre do fato de que o leitor reconhece, ali, a vida – uma vida, qualquer vida – repleta de experiências com as quais ele pode se identificar, pois são plenas de verdades e, no rascunhar desse pequeno mapa da existência, mostra as possibilidades humanas.

Há outros aspectos do livro que podem ser desenvolvidos. Há contos que enunciam outras vertentes – é o caso de “Labaredas, Labaredas”, com viés fantástico, ou “Domingo de azul Portinari”, que promove uma original quebra de linguagem. O lado que não era visível para quem estava na estrada, é obra de um escritor prontíssimo. E como sempre se diz, agora os leitores ficarão à espera do romance.

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O lado que não era visível para quem estava na estrada, de Luís Roberto Amabile

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O escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil é autor da Oficina de Criação Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, é também criador do programa de pós-graduação em escrita criativa na mesma universidade. 

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