* Por Gabriela Soutello *

Eu queria lembrar como é nascer. Observava ontem ainda os fios de mato que pela estrada cresciam, encostada à janela num ônibus médio vazio, pijama e sol, os pés em meia apoiados sobre o banco onde dormia um velho que, eu sabia, foi, um dia, mais novo que eu. 

Nascer: deve ser sensação parecida como quando a gente se precisa mudar: rasgar os ventres dos tempos abrindo as pálpebras a novas cascas – e por elas nos perdermos, mais de uma vez, e nos fazermos casa, nos íntimos e nos externos, nos extremos: que a quebra, em emergência, nos transporta constante para o além riacho do que um dia foi.

Ontem eu senti os pelos em arrepio quando me senti também mato, e pensei que talvez escrever seja sempre, em qualquer formato, apelo de toda vida ainda viva: uma carta em desespero. Pudesse você, remetente, rezar, por quem seria? Fosse capaz de pedir, por qual nome chamaria? Dia em que meu pai morreu eu chamei e, desde aquele dia, não mais lembrei como se nascia. Era ainda fim da tarde quando me caíram nas pernas teorias tantas dos retornos eternos, roda de Samsara, karma, existência abençoada, estados de consciência, ciclos ciclos ciclos, pó, nada.

Nas dúvidas que eu tinha, dia a dia, mês seguinte, ele ainda respirava. Eu percebi o corpo assim tão frágil e, a vida, como os dedos, em vacilo, quando me percebi também ar. Era densidão o nosso encontro, toda vez que eu fechava o olho e ouvia os secos do chão: pisada firme nos tacos, a sola quente feito sangue, a queimadura nos dedos do pé e a mancha úmida no carpete.

Carrego poças e labaredas como marcas de pertencimento. Terra é elemento, vento é elemento, fogo é ação e, água, sentimento – não seria então, remetente, ao todo calculado em passo-a-passo que pertencemos? Na mesma mão me segura em aperto a certeza do espírito que era do meu pai e a dúvida do espírito que era e que é e que renasce meu. E eles, espíritos, se contam, segredados, sempre aos domingos: todos já estivemos no futuro, e morrer é simples, e morrer é impossível.

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Gabriela Soutello é escritora e jornalista, autora do livro de contos Ninguém vai lembrar de mim (Pólen, 2019), contemplado pela 1ª. Edição do Edital de Publicação de Livros Para Estreantes da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e vencedor do 1º Prêmio Mix Literário, do Festival Mix Brasil.

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Arte: Robert Doisneau, Le petit balcon, 195e3, MOMA

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