* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

 

Dentro do box do meu banheiro há um espelho. Nele consigo me ver nu todas as vezes que tomo banho. O interessante que é nesse momento que sempre me pergunto se estou satisfeito com a grossura das coxas, se meu tórax poderia ser maior, se meu pênis é do tamanho ideal ou se minha barriga não poderia ser torneada. Há sempre um desejo de mudança. Semanas atrás li: “comprei aquele pinto em 3D na esperança de viver uma vida mais autêntica” (p.13) no livro do Roberto Muniz Dias. Já comprei pênis de plásticos – dildos – escolhendo as medidas inúmeras de possibilidades na loja. Comprei um, tempos depois busquei outros diferentes. O mercado me oferecia essa possibilidade: várias possibilidades de consumo de pênis. Pênis à empoter, como dizer os franceses. “Quanto está o quilo da piroca, heim moço?”, imaginei como seria divertida essa pergunta se houvesse um lugar para comprar pênis, bunda ou vagina por quilo como se fosse um produto para acoplar ao meu corpo. E se eu fizesse uma cirurgia plástica para diminuir minha barriga? E se colocar silicone para aumentar minha bunda? Acho que não teria fim a tentativa de me desmontar e me remontar, pois sempre o mundo iria me exigir um padrão. O perigo estaria aí nessa ilusão de que teria uma vida mais autêntica atingindo o padrão de fora, de outrem, que não o meu. Desliguei o chuveiro e vi que o espelho estava embaçado com o vapor d’água quente e a imagem, a minha, precisava ser resgatada sem interferência.

 

Vou propor, logo de início, um exercício de imaginação. Pensem em uma situação na humanidade que fosse possível trocar, sem grandes problemas, de órgãos – principalmente os sexuais – e ir construindo seu corpo com partes novas compradas pela internet ou no mercado da esquina. O que você acharia dessa ideia? Gostaria de ter essa possibilidade? É sobre essa ideia que o novo livro, Todos somos bolhes, do escritor Roberto Muniz Dias (Editora Nua) propõe: uma reflexão sobre uma Era, tão cientificamente avançada, em que fosse possível substituir partes do corpo que não nos agrada por outras que desejamos. Uma Era que os limites da ciência estivessem extrapolados e uma delas, a biologia, fosse implodida e reconstruída como uma categoria self-service de corpos. A vida como conhecemos e a biologia como ciência fossem transformadas em uma maquinaria instrumentalizada e robótica, ou seja, a mercantilização dos corpos: braços, pernas, pênis e vaginas fossem encontrados em lojas para serem comprados e utilizados como implantes nos corpos como desejamos. Essa ideia, a princípio, é fascinante e assustadora ao mesmo tempo. Fascinante porque atende nosso desejo de consumo e de constante movimento de vida. Assustadora, pois não nos reconheceríamos uns aos outros em uma perspectiva de tempo e a vida, como conhecemos, estaria esfarelada em poucos instantes. E é sobre vida e ciência que “Todos somos bolhes” tem como uma das discussões. Afinal, qual o limite que a tecnologia científica pode chegar na manipulação dos nossos corpos?

A ciência foi uma das culturas mais bem sucedidas da humanidade. Foi por meio do florescimento do conhecimento científico que o obscurantismo medieval caiu por terra e uma nova Era da humanidade passa a ser inaugurada. Rapidamente, o sistema capitalista percebe a importância da ciência como uma forma de manutenção do seu próprio sistema e insere o saber científico na ideia de tecnologia e a tecnologia como uma forma de progresso. Essa ideia da associação da ciência com a ideia de progresso que é a chave da discussão da ciência nas sociedades a partir do século XX. A ideologia cega de uma ciência associada ao progresso leva ao mau uso da ciência, culminando na tragédia da morte industrializada na segunda guerra mundial com o extermínio em massa de pessoas e o bombardeio das cidades japonesas com as bombas atômicas. O uso responsável da ciência passa a ser uma questão importante para as sociedades pensarem “bioética” como imperativo. Em meio ao esse desenvolvido da ciência como um todo, várias áreas do campo científico foram se dividindo e se desenvolvendo de forma autônoma. Uma delas foi a biologia que passa a ser pensada como uma ciência autônoma e com características próprias e diferentes de outras ciências como a física e a química. O filósofo da biologia, Ernert Mayr [1904-2005], em “Biologia, ciência única” (2005) foi um dos pioneiros a propor essas questões e colocar à mesa que a biologia, diferentemente da física e química, trabalha com conceito de indivíduo de uma forma própria. Há diversas outras características que Mayr nos propõe para fundamentar a biologia como uma ciência única. Vamos a uma importante aqui. Por exemplo, cada indivíduo, apesar de sua constituição genética ser compartilhada com outros, desenvolve suas características de maneira própria. Ou seja, uma reação que o individuo X apresenta pode ser diferente dos indivíduos Y, Z ou A. O que nos leva a ter que pensar o indivíduo na biologia de uma maneira única. Claro que essa discussão não se furta ao sequestro da biologia pela lógica capitalista. O sistema capitalista tomando cada ser como único brinca com as possibilidades de liberdades dos desejos de cada indivíduo. As questões das liberdades individuais nos meados do século XX são centrais nos objetivos do sistema capitalista. A Era do indivíduo, tal como reconhecido pela própria ciência, se soma à Era dos desejos. O resultado disso é a comercialização de subjetividades pelo Neoliberalismo.

Quem vai nos ajudar a esclarecer sobre é o pensador Paul B. Preciado [1970] – na foto ilustrativa do ensaio – com sua obra profunda e vasta sobre gêneros, sexualidades e capitalismo, em especial, o livro “Testo-Junkie” (2018). Nesse texto, Preciado por uma auto experiência com o hormônio testosterona vai vivenciar na sua biologia e na sua ação política as consequências da Biopolítica da nova fase tardia do capitalismo, como o autor vai chamar, de uma Era em que o alvo central do sistema capital são as políticas de gêneros e sexualidades nas construções das subjetividades. Em resumo, o autor espanhol vai nos trazer como a indústria farmacêutica, a lógica capitalista (em especial a neoliberal) e os desejos subjetivos vão formar uma amálgama importante que está no nosso tecido social após a segunda guerra mundial: a “farmacopornografia”. Hoje, dependendo do seu desejo, há uma indústria politicamente e economicamente preparada para manipulação molecular, anatômica e fisiologia dos corpos. Com a administração de moléculas e intervenções anatômicas você constrói um corpo novo em você. Ou seja, Preciado em “Testo-Junkie” implode o projeto de biologia e passa a uma não biologia tradicional como conhecemos. “Testo-Junkie” é uma nova Era da ciência: uma biologia construída.

Voltando ao exercício imaginário que propôs no início em que já podemos ter uma resposta mais concreta: não há limites para a ciência. A biologia, então, passa a ser a categoria das possibilidades. Um ser vivo pode ser construído por alguns reais, dólares ou euros. Alerto que minha posição não é conservadora no posicionamento de uma biologia tradicional e estanque que tenta transformar nascimento fisiológico de corpos em destino de vida. Ao contrário, tanto a tese de Mayr quanto de Preciado são importantes para, além do avanço da biologia como ciência, pensarmos as artimanhas das biopolíticas quanto dos usos responsáveis da ciência no século XXI. A crítica vai aos usos dos nossos desejos e subjetividades como produtos da lógica neoliberal. Ou seja, o discurso de que só somos felizes se consumirmos. Até mesmo o consumo de corpos ou na construção de nossos corpos como radicalização do potencial do querer. O alerta é a questão: uma vida autêntica depende da escultura biológica de mim? Nisso acompanho o raciocínio do filósofo político norte-americano Michael Sandel [1953], no seu livro “The case against pefection” (2007) (Contra a perfeição [tradução minha]), em que vai denunciar o uso descarado da ciência pelo sistema capitalista, por exemplo, que por um determinado valor um sujeito pode encomendar a cor dos olhos ou tamanho de um filho em uma clínica de fertilização. O que Sandel nos alerta é para um plano de dominação que os maus usos da ciência fazem ao esfarelar conceitos importantes como de autonomia, igualdade e justiça. Afinal, em um mundo desigual e hierarquizado como o nosso, quando corpos ou pedaços deles são comercializados, a noção de liberdade em sermos como quisermos está em perigo. O mau uso da ciência como tecnologia de consumo de corpos faz minar nossas reivindicações políticas de gêneros e sexualidades. As existências sinceras e legítimas de gêneros e sexualidades ficam enfraquecidas como produtos à empoter nas estantes do comércio. As expressões de liberdade não são mais enxergadas como direitos, mas como produtos a serem comprados.

Chegamos à ideia central de “Todos somos bolhes” de Muniz: um mundo tomado pela banalização dos domínios de uma bio-política-econômica dos corpos montáveis.

“Todos somes bolhes” de Roberto Muniz Dias é uma distopia de um futuro não tão distante. No mundo imaginado pelo autor, estamos em um tempo no futuro em que a questão de gêneros e sexualidades pode ser resolvida a uma ida ao shopping. Nesses lugares há máquinas de uma empresa chamada Köoperki que vende, a preços acessíveis, próteses de pênis que podem ser facilmente implantadas. É um tempo dos ciborgues em que todos (todes) podem ter, trocar, implantar, desinstalar próteses de órgãos genitais e viver gêneros e sexualidades diversas em todo momento. A narrativa é do ponto de vista da personagem Toni, que é uma pessoa que nasce e vive uma vida de intersexo, experimentando a fluidez de ora ter uma prótese ou não. A grande questão da narrativa criada por Muniz é quando Toni adquire, em uma máquina do shopping, uma prótese peniana e gostaria de fazer o implante. A história gira em torno dessa odisseia da implantação do pênis por Toni. Mostra suas relações com outras pessoas intersexos ou que se tornaram ciborgues, e que estão envolvidas com as mesmas questões de implante e retirada de implantes de órgãos sexuais. Alguns personagens têm, ainda, incorporações metálicas de órgãos sexuais adicionais ou transformando outras partes do corpo em órgãos sexuais. Em meio a questão pessoal de Toni na implantação do seu pênis, acontecem diversos eventos políticos na cidade que obrigam as pessoas ciborgues a migrarem como refugiadas para outras partes do país.

Um lugar seguro para as pessoas ciborgues é a cidade chamada de “Bolhe” que é uma espécie de sociedade alternativa dessa nova forma humana da distopia de Muniz. Em Bolhe há um espirito solidário, comunitário e de liberdade entre as pessoas que vivem por lá. Porém, Bolhe é desprovida de tecnologias médico-farmacológicas e outras que possam ajudar as pessoas ciborgues com seus implantes na manutenção da vida. Algumas personagens sofrem e até morrem pela falta de assistência médico-farmacológica em Bolhe. Muniz com essa questão nos desnuda a ligação entre ciência e existência na nova Era do consumo dos corpos.

Há inúmeros pontos interessantíssimos na novela de Muniz. Destaco mais três. O primeiro é a personagem central. Toni não é satisfeita com o corpo que possui e se lança a modificá-lo, inserindo e tirando partes que possam adequá-la ao que está em falta. Esse movimento de mudança física influência mudanças psicológicas importantes na personagem. As mudanças também atingem os relacionamentos da personagem. Toni tem diferentes relacionamentos ao longo da narrativa e cada uma vai suprir uma falta e completar algo que está ausente no corpo. Entretanto, o que mais falta a Toni, ela encontrar no final da novela (o que eu não ouso jamais dar spoiler!). Outro ponto interessante é a viagem que Toni faz ao longo da história. Toni e outras personagens passam toda a narrativa em uma viagem. Uma viagem em busca de um lugar seguro para conseguir fazer um implante ou retirar mais uma parte do corpo; ou uma viagem em busca de um lugar seguro em que possam viver em paz; ou ainda em busca de salvar um amor. Guacira Louro, em Um corpo estranho (2018) nos diz que tais corpos são os verdadeiros viajantes pós-modernos que não estão buscando apenas mudanças em seus corpos, mas buscam encontrar na performance instável uma forma de resistência.

O terceiro ponto é a linguagem neutra que é usada em todo texto. Nos dias atuais ainda estamos no processo de luta para o uso de linguagem com gênero neutro. Na distopia de Muniz é a linguagem dada no cotidiano. Não há questionamento da implantação da letra “E” ao final das palavras que definem o gênero. O interessante é que há personagens masculinas, femininas e intersexo na história. Todas as pessoas da novela são chamadas e usam o gênero nas suas gramáticas que desejam. Há uma liberdade gramatical importante na proposta de “Todos somos bolhes” que nos faz pensar que o caminho para o uso do gênero neutro nas nossas linguagens seja a nossa capacidade de aceitar a diversidade de formas de denominar algo. Todos os movimentos contra o uso do gênero neutro não conseguem compreender essa diversidade e criam problema onde não existe, ou seja, o porquê de uma pessoa não pode ser chamada como ela quer? A língua é uma “substância” viva e pode sofrer mudanças importantes de acordo com as necessidades comunicacionais das sociedades. A linguagem neutra de gênero é mais uma dessas necessidades diante de todas as camadas de gêneros e sexualidades que estão sendo relevadas nas sociedades do século XXI. O uso da linguagem de gênero neutra na obra de Muniz é o único implante claro que dá certo e não mostra dor nas personagens. Todos os outros implantes, os de carne ou de aço, trazem uma angústia dilacerante em Toni, Nine e Billy – as personagens principais da trama. Porém, dá para levantar uma discussão interessante, a partir da naturalidade da linguagem de gênero neutra na narrativa, com a pergunta: é o objeto que faz surgir a palavra ou é a palavra que faz surgir o objeto? É uma questão Wittigestariana sobre a estrutura do mundo em conexão ao pensamento e da linguagem. O que na novela de Muniz faz sentido quando a linguagem neutra e a existência de corpos neutros. E essa relação é mais uma faceta da viagem que o livro propõe a nós leitores e leitoras.

A resistência está no difícil espaço em não consumir corpos e permitir as existências múltiplas dos corpos e liberdades individuais. Mayr nos aponta para uma ciência que valoriza o indivíduo. Preciado, por outro lado, nos convida a implodir o conceito de biologia e aproveitar o potencial da nossa liberdade de mutabilidade. Com pitadas de Sandel, acrescento, para o alerta contra a máxima: de que tudo posso com o dinheiro que tenho. Já o livro de Muniz avança, via literatura, na mesma linha de pensamento da dominação científica sobre as nossas subjetividades. O que virá quando tudo for possível? “Todos somos bolhes” é um excelente tempo para essa reflexão.

Respondendo à pergunta inicial quando coloca a minha experiência diante do espelho: não teria nada que mudar no meu corpo. Porém, com certeza, “Todos somos bolhes”, fez um exercício ainda mais importante que foi trazer a possibilidade de pensar os limites da dominação de um sistema capitalista que tenta, a todo tempo, penetrar nas nossas subjetividades. Agora, utilizando nossos desejos, nossas possibilidades de ser. Transformando isso em produtos e não respeitando as possibilidades de liberdades que conquistamos às duras penas. Não significa que ao nascermos X não podemos ter a liberdade de ser Y ou Z. O que não podemos suportar é que essas nossas liberdades sejam tomadas e utilizadas como comércio. “Todos somos bolhes” é a visão do espelho embaçado.

 

Referências:

LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008

MAYR, E. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

PRECIADO, B. P. Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1, 2018.

SANDEL, M.J. The case against pefection. Belknap Press.: Cambridge, Massachusetts, USA. 2007

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor, pesquisador e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França.  Contato: danielmanzoni@gmail.com

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