A leoa de túnica branca

Eu era bem pequena, vivia caindo. Minha cabeça era muito grande em relação ao resto do corpo. Ficava difícil sustentá-la. Eu não parava quieta. Havia um turbilhão dentro de mim, e eu estava sempre em busca de aventuras. Gostava de espiar a janela, mas não conseguia concretizar a proeza se não trepasse em algo. Podia ser em cadeira, banco e, na falta desses, até em uma enceradeira. A faxineira, disso me recordo bem, usava uma túnica branca, folgada, e rosnava quando me via em cima da enceradeira. Sim, ela rosnava como uma leoa. Jamais escutava dela palavras que soassem doces e suaves.

Eu escutava que a fila do ônibus dava voltas, que o preço do leite tinha dobrado, que não tinha dindim para nada, que sua vida era um martírio e, ainda por cima, tinha de aguentar uma menininha como eu.

– Levada igual capeta, num para quieta, dona! A senhora sai pro salão, fico aqui so-zi-nha com sua capetinha.

A resposta da minha deusa era sempre favorável a mim:

– Sinal de saúde, não acha?

– Saúde até dimais da conta! Inda por cima, cai toooda hora. A senhora já levou pro médico? Deve ter argum defeito de fábrica.

– E como ousa falar assim de minha… Ah, melhor você não trabalhar mais para mim, ok?

E lá se foi a leoa, por minha causa. Passei o restante do dia mal, trancada no quarto. Minha deusa passava por lá, de tempos em tempos:

– Está tudo bem, minha linda?

Após alguns minutos, de novo:

– Vamos à praia?

Eu acenava “não, não”. “Me deixe”, pensava. Queria, na verdade, a leoa. Aquele burburinho dela me deixava louca e feliz. Vá entender…

A quietude e o marasmo tiveram fim no dia seguinte, logo depois de a leoa aparecer e pedir desculpas:

– Dona, me perdoa. Sua menina é normal, eu é que sofro dos neuvos.

Quando eu escutei esta palavra – neuvos –, estava à espreita, com os ouvidos colados à porta, doida para abraçar a leoa de túnica branca.

– Você que precisa se tratar. Procure um psicólogo. E por que você sofre dos nervos?

Ela não respondeu. Nem precisava. O ônibus, a fila, a falta do essencial, os filhos. E ainda tinha de me aguentar. E aguentar minhas quedas homéricas.

Eu me lembro de uma memorável. Consegui o feito de subir na enceradeira com os pés molhados. Senti um beliscão, dois, três… Pimba! Escutei a leoa gritar que eu não podia morrer, que, apesar de danada, eu ia fazer muita falta. Escutei uns grunhidos, ao longe…

Acordei, nesse dia, no colo dela. Não rosnava mais, mas as mãos que alisavam meus cabelos anelados eram as mesmas mãos ásperas que exalavam um cheiro ácido e tinham um gosto salgado.

Fomos morar em outra rua. Ela foi junto.

*

Corredor

Mudança. Uma algazarra daquelas. Eles faziam muito barulho, falavam ao mesmo tempo. Eu, mirrada, com o pescoço fino e aquele cabeção.

– Cabeça grande assim, como nós temos, filha, é sinal de inteligência.

Meu pai tentava de tudo para que eu não ficasse com nenhum trauma.

Os cinco zoavam.

– Passe na feira, traga um monte de fruta e não esqueça seu bonezinho.

Todas as vezes, eu caía, caía e caía, na lábia de meus irmãos mais velhos.

Quando a barra ficava pesada para meu lado, eu me chegava em meu pai. E eu o achava lindo, com o cabeção mais lindo do mundo. Minha mãe tinha a cabeça do tamanho normal e já era considerada linda por unanimidade. Meu pai precisava de alguém que o inspirasse, e, como uma doença que pega, eu herdei a cera nos ouvidos e a cabeça. Mas como a vida é sábia! A cera me protegia das brincadeiras dos mais velhos. Alheia ao mundo e, é claro, ornada pelo atributo herdado de meu pai, eu continuava caindo.

Isso foi até irmos para o apartamento novo. Lá, eu dei de cara com um corredor que, de tão grande, beirava o infinito. Nem esperei, saí logo correndo, em meio a alguns gritos de “cuidado com sua cabeça”.

Na primeira vez em que testei o corredor, senti algo bem diferente. Quando chegava ao fim, sentia um abraço. Gostei muito daquilo. Corri uma, duas, inúmeras vezes. Escutei lá longe:

– Acho que ela parou de cair.

Não sabiam eles que eu continuava caindo na escola. Em casa, porém, era outro departamento. Os braços que me afagavam eram braços de pai.

Noite dessas, um de meus irmãos zombeteiros, o mais velho de todos, me ligou:

– E aí, quem viu o cabeção por aí?

Soltei uma risada longa, sem fim. Se aquele corredor tinha braços, eu não sei. Mas que minha autoestima melhorou demais… Ah, melhorou!

Ouvi dizer, passado algum tempo, que um homem se matara naquele apartamento. Chegamos depois de muitas primaveras e invernos, jamais o vi. Mas que ele me segurava… Ah, tenho certeza de que sim!

*

Subida

Minha irmã apertou o botão três. Um homem de meia-idade parecia sofrer de torcicolo, porque o pescoço estava fletido para o lado direito.

– Que calor! Não é mesmo? – Disse ela, mascando um chiclete, há muito, na boca.

O homem permaneceu mudo, como quem não escuta.

– Senhor, está tudo bem?

“Como tem gente estranha nesta cidade grande, uma espécie de autismo coletivo.” O pensamento dela estava voltado para o lugar de onde saíra. O mar por lá sofria de transparências. O daqui era turvo, mas certamente ela acabaria por se adaptar ao local e aos novos amigos da escola.

O elevador parou no andar escolhido. Eram quatro apartamentos por andar, cada andar dividido em dois blocos. Foi ensinada a abrir o elevador para os mais velhos. Em ato automático, ela abriu a porta. Esperou que ele ficasse no primeiro bloco, mas o homem a seguiu.

“Com certeza, ele vai visitar a Dona Dagmar.”

Sem chaves, mascando chiclete, tocou a campainha. O senhor estava à direita dela. Evitou olhar em sua direção.

Estranhou mais uma vez, pois ele não bateu à porta da vizinha. Minha irmã engoliu o chiclete amassado e emassado.

A leoa de túnica branca abriu a porta, com calma.

– Socorro!

Com um grito estridente, abraçou a leoa, que estava lambuzada de suor e de material de limpeza.

– Oxente, tu num é de agarro! Que que acunteceu?

– Não está vendo, não? Ele… Aqui!

– Ele quem?

Com os olhos arregalados e o peito arfante, caiu dura no chão da cozinha recém-limpa pela leoa de túnica branca. Escutei o grito e corri para avisar.

*

A cadeira de balanço

Estava em meu quarto, rodeada por ursinhos de pelúcia e o palhaço da roupa engraçada e colorida. O sono chegara. Depois de tantas estripulias, o corpo reclamava e desejava o aconchego. Devia ter sido impressão minha, escutei um ranger longínquo de cadeira de balanço em movimento. A cadeira estava na sala. Na sala, não havia ninguém. Todos estavam em seus quartos. A janela estava fechada, não havia vento.

Por que a cadeira de balanço estaria em movimento? Saí de minha cama morna na companhia de Tico, meu palhaço com olhos remelados. Antes de ir até a cadeira de balanço, passei no quarto de meus pais. Eles estavam roncando.

“Será que foi este o barulho que ouvi?”

Voltei para meu quarto, quase convencida de que o barulho fora provocado pelo ronco dos dois. Feliz da vida por começar o sono, escutei passos.

“Não posso deixar para lá.” Dei uns bocejos, saí na companhia de Tico, acendi a luz do longo corredor. Segui até o quarto de minhas irmãs. Estavam dormindo. Não roncavam, pareciam felizes. Nas pontas dos pés, continuei no corredor.

Um cheiro de menta invadiu a esquina em que eu estava. Do lado direito, o quarto de meu irmão; do esquerdo, a cozinha, que se refrescava com a brisa da madrugada.

A sala escura e em formato de L só tinha uma luminária – e de fachada. Como não acendia, o abajur era o único item que iluminava, em parte, aquela imensidão que só era vivida em dia de festa. No dia a dia, ela permanecia fechada. Antes de abrir a porta, olhei firme para Tico. Foi desse jeito que me imbuí de coragem e entrei sem enxergar quase nada.

“Vamos encarar!” Assim entramos na sala repleta de livros. O barulho, mais intenso e mais próximo. Acendi o abajur com as mãos em tremedeira. Lá estava a cadeira bailando. As janelas lacradas, as portas cerradas.

O cheiro de menta vinha da cadeira, e não sei o porquê, mas o medo tinha ido embora. Parei ao lado da cadeira, e ela continuou a se balançar. Pedi licença ao invisível e nos sentamos. Tico em meu colo. Animada, a cadeira acelerou. Eu me vi na pracinha, depois nos arredores da fazenda, e sempre uma mão envelhecida me balançando. O cheiro continuava.

De manhã cedinho, escutei mamãe chamar minha atenção:

– Você dormiu aqui? Vai pegar um torcicolo.

– Dormi bem, mãe. Sonhei com a vovó.

E, da sala até a cozinha, minha mãe queria saber os detalhes do sonho. Naquela manhã, eu só me lembrava do cheiro, do cheiro de menta.

*

Adriana Vieira Lomar (1968) é carioca, pós-graduada em Arte, Pensamento e Literatura Contemporânea pela PUC. Autora de Aldeia de mortos (Patuá), entre outros.

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Imagem ilustrativa: Cartier-Bresson por Loengad

 

 

 

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