* Por Caio Girão Rodrigues *

Por que fazer promessas secretas a pessoas impossíveis? Desde o berço até esta calçada suja, úmida e fria, o que me antecede o sono é a nítida consciência de que o inferno está à espreita. Esse segundo que precede o sono é como nascer para a morte. Cabe tanto infinito nesse tempinho curto, tanta coisa se passa. Alcançamos, dizem os artigos científicos, estados transcendentais de compreensão. E esquecemos. Assim como vamos esquecer nossa própria morte depois de morrermos.

Nunca gostei mesmo de travesseiros e lençóis, sempre fui de dormir pelado, de resistir ao frio, encolhendo-me, recusando as fronteiras de cobertas e agasalhos. Uma geografia mais íntima. O contato com o ar. Isso é coisa de criança. E a infância tem esse cheiro de pano molhado de suor antigo, mofo e água sanitária. A infância para mim é aquela salinha da creche, em que as tias costumavam me levar depois do banho, esfregando a toalha pelo meu corpo, depois seus peitos, e às vezes fechavam a porta, tiravam também as roupas, oferecendo os seios imensos, como se fosse um presente, passando a mão por lugares que sequer eu tivera tempo de mapear. Elas riam. Eu lembro dessas risadas com precisão. A merda é que quanto pior tá a coisa mais esses momentos me visitam. Quanto mais escuro, mais risadas. É terrível ficar com os olhos encharcados no meio do dia, ter que engolir as lágrimas para não me manchar.

De repente fico rindo à toa sem saber por que, e vem a vontade de sonhar de novo, te encontrar. As reminiscências da tua voz rouca, no último instante de consciência acordada, me agasalham mais do que qualquer pano. No exército a gente dormia em tábuas, lembra? Insistiam em chamar aquilo de cama, nos obrigavam a deixá-las arrumadas, ainda que não fossem mais do que farrapos podres, nos quais se entranhavam baratas, moscas, formigas. Preferíamos dormir no chão, mas era proibido. Acho que sempre gostei de dormir no chão. Naquela época que fomos morar juntos dormimos no chão por quase um ano. Apesar de tudo o que os médicos dizem, dormir no chão nos bota num estado etéreo.

As camas, eu acho, são mesmo feitas é para guardar tempo, guardar secreções, movimentos, como um palimpsesto imperturbável daquilo que não se escreve. Uma boa rede, você sabe, é mais confortável do que qualquer cama. Mesmo aquela king size que comprei com todas as economias. O tamanho dela era só pra guardar as histórias de tanta gente que passava por mim. Houve semanas que, terrivelmente, eu pensava nas pessoas como pratos num cardápio. Semanas que transava com mais de dez pessoas. E ficava o cheiro impregnado. Aquela cama guardava mais do que nomes ou sono. Um registro preciso das horas e sensações. Debaixo dos lençóis havia mapas de líquidos. Toda cama que se preze tem desses mapas por baixo da lisa superfície visível. Ilhas de gozo e dor.

Eu queria escrever poemas a um você genérico, mas sempre acabo escrevendo a você. Sempre acabo pensando em você. Nos últimos dias tenho sonhado com nossas conversas sobre sonhos e pesadelos, sobre como seus sonhos eram tão inventivos e cheios de significado, enquanto os meus eram como lembranças terríveis e assombradas, às vezes lembranças de um futuro óbvio inevitável. Por que você não me visita para seus sonhos?

Eu queria pedir desculpas, queria poder chorar no colo da mamãe e ficar emburrado por ter meus segredos revelados. Minhas palavras estão presas na sarjeta. A única ponte que consegui construir entre essas ruas e uma vida apresentável é uma ponte falsa. Caminho sobre mentiras. Minha cabeça rodopia, rodopia e, invariavelmente, volta para aquelas tardes úmidas na creche, minha boca cheia de partes das tias, minhas mãos imobilizadas, minha culpa de criança idiota. E é como se você estivesse lá e aqui, no inferno e na sua representação.

*

 Caio Girão Rodrigues é escritor.

*

Imagem ilustrativa: Cartier-Bresson.