Racismo mascarado

* Por Florestan Fernandes *

São tantos e tão profundos os laços que me prendem a Abdias Nascimento [autor de O genocídio do negro no Brasil, que acaba de ser reeditado], que enfrento um compreensível acanhamento em apresentar esta obra ao público brasileiro. Estamos no mesmo barco e dando o mesmo combate – não de hoje, mas há anos. Persistimos por uma questão de caráter e de formação política. E se algo nos separa é o vulto de sua contribuição, comparada com a minha. Eu fui acusado de identificação moral e psicológica com o negro. Ele é o negro militante que não pode ser acusado por ninguém, e porventura o que não desistiu depois que todas as bandeiras se arriaram. Portanto, o que nos distingue é a qualidade de sua contribuição e o valor de sua atividade.

Nesses dois pontos, há que tomar em conta uma pedagogia e uma política. A pedagogia se consubstancia no Teatro Experimental do Negro, que ele inventou como um expediente revolucioná- rio que abalasse as estruturas mentais do negro, destruindo uma autoimagem reflexa destruidora, e que expusesse a hipocrisia racial do branco a uma crise irreversível. A política aparece na guerrilha a descoberto e permanente: fustigar as causas e os efeitos do “preconceito de cor” sem qualquer concessão, entre os brancos e entre os negros – e contra ambos, quando eles se revelassem indignos da lição. Em consequência, a denúncia da propalada democracia racial se convertia em fato político e passava a contar como fator de erosão da ideologia racial oficial.

Este livro repõe, de novo, todo o significado da presença de Abdias Nascimento na agitação do problema africano no Brasil (e não mais do “problema racial brasileiro”). Ele não pede “as migalhas do banquete” e tampouco perde tempo com a “questão da justiça à gente negra”. Isso ficou para o passado, para as agitações e os movimentos das décadas de 1930 e de 1940. Como não é branco e liberal, como Nabuco, não toma as vestes do paladino da “causa do negro”; e como não acredita que se possa fazer qualquer coisa antes de uma autêntica revolução democrática, também não se apega ao fomento de uma contraideologia racial de autodefesa e de contra-ataque. Limpa e claramente retoma a ação direta dos quilombolas, centrando suas baterias na luta pela liberação do negro e do mulato de tantas e tão variadas servidões visíveis e invisíveis.

Vejo neste livro três contribuições novas, para as quais convém chamar a atenção do leitor. Primeiro, a mais importante de todas: a configuração do protesto negro no contexto histórico do último quartel do século XX. Depois de algumas arrancadas audaciosas e incompreendidas, principalmente nas décadas de 1920, 30 e 40, o negro aceitou a tática do que parece ser o “caminho viável” e “mais fácil”: o da infiltração individual, das compensações pessoais, que simplifica as coisas e revela que “o negro de alma branca” é tão competente quanto qualquer outro, nacional ou estrangeiro. Por que não? Abriram-se novas vias de ascensão econômica, social, cultural e política. Não são muitas, mas aparecem em vários níveis. Por que não aproveitá-las no melhor estilo convencional, posto em prática pelos brancos? São vias que levam, com frequência, à proletarização (a transformação real em trabalhador livre e a integração às classes trabalhadoras) e, algumas vezes, a posições cobiçadas (para alguns, nas chamadas “classes médias”; para poucos, nas “classes altas”). Essa tática é suicida, no plano coletivo: ela pressupõe a acefalização da população negra. Seu talento é transferido para os estratos sociais da “raça” dominante e passa a ser utilizado na mais estrita defesa da ordem. Todavia, esse é o preço a ser pago pela conquista de “um lugar ao sol”. De modo indireto, ela é construtiva, pois cria, aos poucos, um novo negro, que força a reeducação do branco na avaliação do negro e do mulato e põe em xeque os estereótipos ou os estigmas raciais. Estamos, pois, em um clima pouco propício ao reencetamento do protesto negro. Abdias não só o retoma, ele o reequaciona política e socialmente. Não fala mais em uma “Segunda Abolição” e situa os segmentos negros e mulatos da população brasileira como estoques africanos com tradições culturais e um destino histórico peculiares. Em suma, pela primeira vez surge a ideia do que deve ser uma sociedade plurirracial como democracia: ou ela é democrática para todas as raças e lhes confere igualdade econômica, social e cultural, ou não existe uma sociedade plurirracial democrática. À hegemonia da “raça” branca se contrapõe uma associação livre e igualitária de todos os estoques raciais.

A segunda contribuição se vincula ao uso sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro brasileiro. Trata-se de uma palavra terrível e chocante para a hipocrisia conservadora. Contudo, o que se fez e se continua a fazer com o negro e com os seus descendentes merece outro qualificativo? Da escravidão, no início do período colonial, até os dias que correm, as populações negras e mulatas têm sofrido um genocídio institucionalizado, sistemático, embora silencioso. Aí não entra nem uma figura de retórica nem um jogo político. Quanto à escravidão, o genocídio está amplamente documentado e explicado pelos melhores e mais insuspeitos historiadores. A abolição, por si mesma, não pôs fim, mas agravou o genocídio; ela própria intensificou-o nas áreas de vitalidade econômica, onde a mão de obra escrava ainda possuía utilidade. E, posteriormente, o negro foi condenado à periferia da sociedade de classes, como se não pertencesse à ordem legal. O que o expôs a um extermínio moral e cultural, que teve sequelas econômicas e demográficas. Contra Abdias se pode dizer que essa realidade não foi, ainda, suficientemente estudada pelos cientistas sociais. Mas ela é conhecida e suas proporções não são ignoradas, pelo conhecimento de senso comum, pela experiência direta de negros e mulatos pobres e por evidências de investigações parciais, que apanham uma ou outra fatia da sociedade brasileira. Portanto, o genocídio ocorreu e está ocorrendo; e é um grande mérito de Abdias Nascimento suscitá-lo como tema concreto. Com isso, ele concorre para que se dê menos ênfase à desmistificação da democracia racial, para se começar a cuidar do problema real, que vem a ser um genocídio insidioso, que se processa dentro dos muros do mundo dos brancos e sob a completa insensibilidade das forças políticas que se mobilizaram para combater outras formas de genocídio.

A última contribuição está toda ela concentrada no capítulo 15, de conclusão. Há uma passagem construtiva do diagnóstico e da condenação para sugestões práticas. Fugindo à hipocrisia e à tolerância calculada dos opressores e à impotência dos oprimidos, Abdias Nascimento propõe uma série de medidas que poderiam configurar a construção de um novo futuro no presente. Essas sugestões demarcam a diferença essencial que existe entre uma pseudodemocracia racial e o que deveria ser uma sociedade plurirracial democrática. Muitos dirão que ele se apega a uma utopia e que, sob o capitalismo, nada se conseguirá. Aí está uma discussão acadêmica. Sob o capitalismo é possível fazer algumas transformações e urge partir da ordem existente para fomentar uma democratização profunda de todas as esferas de vida. Sabemos que o Brasil ainda não forma uma comunidade política verdadeiramente nacional (pois a maioria ainda está excluída da participação efetiva e eficiente dos direitos civis e políticos) e que também ainda não é uma sociedade democrática (pois o poder está institucionalmente concentrado no topo das classes possuidoras e de seus setores dirigentes). Nada disso impede que as reivindicações democráticas, igualitárias e libertárias sejam proclamadas e, o que é mais importante, que se lute por sua implantação nas condições existentes. Vistas desse prisma, as proposições de Abdias são congruentes e decisivas. Elas mudam a qualidade das exigências do negro e do mulato, bem como os rumos de sua relação com a revolução democrática na sociedade brasileira.

Não pretendia escrever um prefácio e, de fato, não o fiz. Limitei-me a estreitar as mãos de um companheiro de luta e a solidarizar-me com ele. Acredito que estamos certos e creio, firmemente, que em breve o significado histórico da missão que Abdias Nascimento se impôs será reconhecida e receberá forte apoio de todos aqueles que lutam pela causa da democracia no Brasil.

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Florestan Fernandes foi sociólogo e político brasileiro, autor de diversas obras, com Da guerrilha ao socialismo: A revolução cubana (1979); O que é revolução (1981) e Poder e contrapoder na América Latina (1981). O texto acima é o prólogo à edição brasileira de O genocídio do negro no Brasil, de Abdias Nascimento [uma das mais destacadas vozes pelos direitos dos afrodescendentes do Brasil], que acaba de ser reeditado pela editora Perspectiva, com apoio do Itaú Cultura

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